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O novo assustador

Atemoriza-me mais que tranquiliza a manifestação da maioria dos profetas de nossos dias. Falam em novo normal, e têm dificuldade em apresentar alguma coisa que seja portadora de novidade. A normalidade à qual a maioria deles se refere sequer arranha algum traço diferente da realidade em que nasceram, aprenderam e, pior, com a qual se comprometeram. Alguém veria com tolerância - a meu ver exagerada – a perfeita sintonia com o que muitos chamam espírito do tempo. Nascidos, criados e educados dentro do quadro de valores vigentes, nada de mal haveria se fossem apenas retrato de sua época. A imersão em sociedade mantenedoras de relações interpessoais marcadas por feroz e voraz competição não lhes permitiria fugir ao que parece seu destino. É esse apego a uma sociedade regida pelo egoísmo extremado, a competição destruidora afetando tudo e todos – da natureza às minorias e aos diferentes, que me causa profunda apreensão. É como tirar do homem os atributos que o tornam humano. Uma espécie de condenação a manterem-se todos meros espectadores, enquanto se entregam acomodados à espera do que sabem que ocorrerá – a morte certa. Renúncia ao papel de agentes da história, da sua própria em primeiro lugar, esses defensores de um normal cabível dentro da cadeia alimentar própria do reino animal, sequer reconhecem os avanços tecnológicos e, quando o fazem, veem-se apenas como beneficiários exclusivos das consequências do avanço científico a que correspondem. Esquecem de um fato, este sim marcante, no que diz respeito ao novo. Refiro-me à possibilidade de o homem chegar a um ponto em que a morte será adiada cada dia mais, ainda que o prolongamento da vida humana possa tornar a sociedade dos seres ditos inteligentes multidão inumerável de robôs. A morte, assim como a vida, passa a subordinar-se à decisão individual ou coletiva.

Parece curioso e paradoxal levantar essa hipótese, quando enfrentamos pandemia exterminadora de milhões, a que os meios de comunicação e alguns especialistas consideram a pior crise por que terá passado a sociedade moderna. O tamanho da crise, é forçoso admitir, é dado pela convergência de fenômenos capazes de emergir e tornar-se ostensivos em várias áreas da atividade humana. Como se, antes do novo coronavírus, as pessoas e comunidades inteiras foram afetadas por outras manifestações diferentes daquelas com que a natureza desafia os seres humanos, também parte dela, mas percebendo-se todos e cada um como soberanos em relação a ela. Não terá sido um tsunami, nem a erupção de algum poderoso vulcão, mesmo o ataque de numeroso grupo de animais selvagens o responsável pelos estragos que a pandemia vem causando. São claros os sinais de que concorre para o morticínio atual sobretudo o comportamento dos indivíduos. As perdas de vida têm sido menores lá onde as lideranças mostraram-se menos resistentes à Ciência e mais sensíveis às necessidades de seus governados. Em grande parte dos outros países, à conduta negativista, cultora da ignorância e orientada pela lei da selva, correspondeu verdadeiro extermínio coletivo. Em certa medida, porque a normalidade vigente deixa de fora ou torna menores os pesados constrangimentos impostos aos explorados de sempre. Pois é a volta ao que era antes o que parece animar a pequena minoria que dá de ombros para o sacrifício dos que, hipocritamente, com terços na mão e frequência aos templos comerciais onde a fé é vendida, chamam de semelhantes, enquanto tratam de tirar proveito de um vírus para tornarem-se ainda mais ricos. Nem se lembram de que a terra que os manterá presos eternamente será a mesma que cobrirá os outros.

Como ficar tranquilo diante dessa tragédia?

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