José Alcimar de Oliveira *
"Eu vim a este mundo para realizar um julgamento, a fim de que vejam os que não podem ver, e os que podem ver se tornem cegos" (Jo 9,39)
01. Hoje, na liturgia da Igreja Católica, celebramos o 4° Domingo da Quaresma. A leitura do dia vem do Evangelho segundo a narrativa de João 9,1-41: um belo relato sobre a cura do cego de nascimento que bem poderia chamar-se JESUS DE NAZARÉ E A DIALÉTICA DA CONVERSÃO. Mover-se em contradições dialéticas, é preciso dizer, é um método que atravessa a vida de dois grandes judeus heterodoxos: Jesus e Marx: luz-trevas; proletariado-burguesia; verdade-mentira; valor de uso-valor de troca; liberdade-escravidão; consciência de classe-alienação; evangelho-religião; reificação-emancipação humana.
02. O cego de nascença do Evangelho segundo João vive uma dupla prisão: de um lado, a do farisaísmo do sistema religioso, com seu legalismo e rituais vazios, que impunha aos pobres pesados fardos que os próprios Mestres da Lei se recusavam a carregar; de outro, a da cegueira de nascimento, agravada por sua condição social de miséria. Para o preconceito da época, legitimado pela religião, a doença era vista como sinal do castigo divino: mesmo os discípulos de Jesus reproduziam a cegueira religiosa ao perguntar: “Rabi, quem foi que pecou, para ele nascer cego? Foi ele, ou foram seus pais?” (Jo 9,2). A pedagogia dialética de Jesus de Nazaré está inteirinha nesse relato joanino.
03. Jesus de Nazaré, com sua práxis evangélica, quebra os grilhões dessa dupla prisão: a da cegueira ideológica da religião dos fariseus e a da cegueira biológica do cego desde o nascimento. Mais do que recuperar a visão dos olhos, o cego de nascença recuperou, em Jesus de Nazaré, a liberdade de consciência. Rompeu o círculo vicioso da ignorância, o que lhe valeu, tal como a Jesus, a expulsão da sinagoga. Em paráfrase ao grande Antônio Vieira, a igreja (sinagoga, no caso) é mais paço do que passos. Conhecimento que liberta procede da práxis, da dialética teoria-prática. A partir daquela experiência luminosa, estou certo de que o cego de nascença tornou-se militante do Movimento de Jesus, título de um livro necessário escrito por Eduardo Hoornaert.
04. Segundo José Comblin, o teólogo da esperança dos pobres, a cultura é também “a prisão dos pobres”. Os intelectuais, inclusive os orgânicos, tendem (tendemos) a pensar a cultura somente pelo seu lado emancipatório: cultura como a apropriação subjetiva e crítica do mundo pelo sujeito. Pensada como modo de vida, ethos, costume, cultura é como a água na qual nascem e vivem os peixes e da qual não podem tomar distância sob pena de morrer por asfixia. A água é sua primeira e única natureza. Quando vivida pelo ser social sob a condição de uma segunda natureza, tudo cabe na cultura. É o típico conceito-cilada. Pode igualmente aprisionar ou libertar. Mas a cultura que nos aprisiona também nos oferece as mediações emancipatórias.
05. A atitude de Jesus de Nazaré diante do cego de nascença foi a de um kantiano avant la lettre: conjurar contra o esclarecimento é “um crime contra a natureza humana”. Jesus transforma o que era aceito como natural – a crença de que a doença era fruto do castigo – num espaço político para ampliar a formação humana: “Não foi ele que pecou, nem seus pais, mas isso aconteceu para que as obras de Deus (os Sinais do Reino) se manifestem nele. Nós temos que realizar, enquanto é dia, as obras (os Sinais) daquele que me enviou. Quando vier a noite, ninguém poderá trabalhar. Enquanto estou no mundo, eu sou a luz do mundo” (Jo 9,3-5). A escuridão é sempre propícia aos salteadores.
06. A cultura nos possui mais do que a possuímos. O cego de nascença, liberto por Jesus de Nazaré, estava ele também possuído pelo preconceito (social e religioso) que associava a cegueira ao pecado. Jesus é assertivo e enfrenta a farsa farisaica: ninguém pecou. Ele abre o tempo da luz (kairós) em confronto com o tempo (chrónos) das trevas. O cego de nascença, que vivia sob o chrónos da Lei, da opressão e do preconceito, encontra em Jesus de Nazaré o kairós da liberdade, da emancipação e da verdade. Nele, da miséria de sua cegueira, de nascença, social e ideológica, nasce, por meio da práxis do Jesus histórico e do Messias da fé, a visão de um tempo inaugural.
07. Inaugura-se para o cego de nascença e para todos os cegos, sobretudo para os prisioneiros da cegueira ideológica, o tempo da verdade. Agora, cegas e cegos conhecerão a verdade, e a verdade libertará a todas e todos (cfr. Jo 8,32). Não é a verdade em si que liberta, seja a verdade revelada, metafísica ou histórica, mas o conhecimento da verdade por meio da práxis. Do contrário, como atesta o belo poema-prólogo do relato joanino, que sentido haveria em o Verbo se fazer gente, gente de carne e osso, sob a opressão, religiosa inclusive, se não fosse para afirmar a emancipação humana?
____________________________________________
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe, em Manacapuru – AM e em Jaguaruana – CE. No dia 19 de março (Solenidade de São José) do ano da união e reconstrução de 2023.
Comments