Alexandra Lucas Coelho
Eu vi, como tanta gente estaria a ver, uma mulher sozinha com uma cadeira vazia de cada lado, e em volta os eleitos da democracia mais poderosa da Terra a ovacionarem de pé, minuto a minuto e durante quase uma hora, o homem já condenado como criminoso de guerra que continua a comandar o maior extermínio do nosso tempo de vida. Pareciam bonecos com mola ou controle remoto, uma plateia de bonecos de blazer a saltar num aplauso frenético ao fim de cada frase. E eram o Capitólio a Casa da Democracia americana, recompensando o primeiro-ministro de Israel com uma honra que nem Churchill teve: o seu quarto discurso ali.
Aparentemente Netanyahu também estava de blazer, mas foi de avental e cutelo que o vi quando exibiu alguns dos israelitas que trouxera: o soldado etíope, o soldado muçulmano, o que perdeu um braço, o que perdeu uma perna, e ainda o pai que perdeu um filho. E que coração não estaria com a dor deles? Todos ali na plateia, transformados em munição pelo mais bem sucedido talhante de partes humanas. Não só braços e pernas, como bem mostraram os eleitos no Capitólio, amputados de alguma parte interna para a qual não há próteses.
Lá em cima, nas galerias, familiares de reféns israelitas com t-shirts a pedir um acordo AGORA foram retirados pela polícia, sem que isso se notasse na plateia. Mais de cem representantes do Partido Democrata faltaram à sessão em protesto. Kamala Harris que deveria presidir, esteve ausente, escudando-se num compromisso prévio. E do lado de fora, milhares protestavam, com centenas a serem detidos, incluindo judeus com t-shirts ou kipas contra o genocídio, pelo cessar-fogo, o embargo de armas. Alguns activistas conseguiram até infiltrar-se no hotel da comitiva israelita, deixar lá vermes como os que infestam Gaza.
Todos os protestos fazem diferença para os palestinianos, ajudam-nos a não enlouquecer. Mas não apagam o que aconteceu no Capitólio: a ovação para a morte em Gaza, que é a nossa também. Porque quem batia palmas não eram terroristas banidos. Eram os eleitos.
Vi-os em directo, os bonecos. E no meio deles, aquela mulher: Rashida Tlaib, a primeira palestiniana-americana eleita no Congresso. Por acaso era o dia do aniversário dela. Ao longo dos 292 dias anteriores falara muitas vezes ali pelos palestinianos. E na quarta feira, 24 de Julho, em vez de não ir, fez algo mais fulminante. Sentou-se com o seu kuffyieh e o seu pin da Palestina, e sem se levantar, nem abrir a boca, levantava uma pequena placa que dizia CRIMINOSO DE GUERRA e do outro lado CULPADO DE GENOCÍDIO.
Essa é a imagem que não abriu todas as notícias, nem fez todas as capas. Rashida no meio dos bonecos da democracia, com uma cadeira vazia de cada lado e a palavra erguida, voltada para Netanyahu.
Era a mais sozinha ali. E fora dali, quanta gente a acompanhava.A sessão do Capitólio foi uma cópula obscena de uma parte substancial de Israel com uma parte substancial dos EUA. Sim, tantos em Israel estão contra Netanyahu, pior líder desde algum péssimo na Bíblia, etc. E claro, a América é muito mais do que aquela plateia de bonecos. Mas a tragédia também é essa: estamos a falar de democracias, ali tínhamos o que foi votado pelo povo, e com um poder tão grande que despreza ou combate as Nações Unidas, a sua ajuda e a sua lei, incluindo: 1) O Tribunal Internacional de Justiça que há uma semana declarou a ocupação israelita ilegal ordenando a retirada imediata; 2) O Tribunal Penal Internacional que há meses indiciou Netanyahu por crimes de guerra.A sessão do Capitólio foi uma cópula obscena de uma parte substancial de Israel com uma parte substancial dos EUA.
Este é o poder israelita-americano que tentou dar cabo da UNRWA, não provou nada, e hoje vê todas as nações voltarem ao apoio. O poder que deu cabo da vida de centenas de milhares de crianças, e nega a UNICEF, a Human Rights Watch, os Médicos Sem Fronteiras. Que vetou incontáveis propostas de cessar-fogo, lançou incontáveis bombas. Que acredita (ou se comporta como acreditasse) que Deus nasce em Israel e se põe nos Estados Unidos da América. Supremacistas para quem a lei internacional vale tão pouco como a vida do resto do Mundo. _________________________________________________________________________________
* Transcrito do jornal "Público", de Lisboa
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