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NORDESTINO: CABRA MARCADO PARA LUTAR E RESISTIR NA LUTA

José Alcimar de Oliveira*



Como é necessário o pão diário

É necessária a justiça diária.

Sim, mesmo várias vezes ao dia (Bertolt Brecht).


01. 08 de outubro de 2021: dia do Nordestino. O Nordestino, o sertanejo para Euclides da Cunha, “é antes de tudo um forte”. Como o Brasil seria pálido, triste, retensivo e carente dos bons afetos do mundo sertanejo sem a presença multidiversa dos nordestinos, inclusive do Ceará de meus pais. O que seria de nossa literatura sem a força de Vidas Secas, de Graciliano Ramos? E O Quinze, de Rachel de Queiroz? Como pensar o Brasil sem a utopia de Canudos, do grande Antônio Conselheiro, que impôs à cabeça positivista de Euclides, com sua formação castrense e cartesianamente ordenada, as dúvidas que lhe mobilizaram ideias e inquietações para a escritura de seu incontornável Os Sertões? Reportagem convertida em literatura ou literatura enraizada em relato social? Sem o Nordeste e seus dilaceramentos sociais não haveria Conselheiro, Canudos e muito menos o Euclides de Os Sertões.

02. Filho de mãe, pai e avós nordestinos, mas nascido no Amazonas, na comunidade de Bela Vista, em Manacapuru, às margens do portentoso Solimões, vivi parte de minha infância, dos cinco aos dez anos, de 1961 a 1966, na Jaguaruana do Ceará de meus pais, à margem do Jaguaribe, considerado maior rio seco do mundo. O Jaguaribe, termo tupi que literalmente significa “no rio das onças”, é cem por cento cearense como cem por cento brasileiro é o Velho Chico. Sofrido em razão das cercas do latifúndio capitalista, mas muito dadivoso, o Jaguaribe beneficia cerca de 80 municípios cearenses. Em suas águas muitas vezes acompanhei meu pai Marcondes nas pescarias de sobrevivência nos primeiros anos da década de 1960. A transposição dos meus sonhos seria a da conjugação das bacias do Solimões e do Jaguaribe. O Solimões do Amazonas é habitado por muitos nordestinos (inclusive de Jaguaruana) do Jaguaribe alencarino.

03. Mais do que a seca, foram as cercas do capital genocida e do latifúndio assassino que expulsaram parte dos nordestinos para o Brasil de Norte a Sul. Os nordestinos, sobretudo os de vida severina, têm um Cabral de que se orgulham, o João Cabral de Melo Neto de Morte e Vida Severina, um canto poético nordestino esculpido com palavras de pedra e lamento. Foram braços e mentes dos candangos nordestinos que ergueram Brasília, a capital que os expulsou e a cada dia é mais dominada pelo capital sem controle, que a tudo controla, do poder mediático ao religioso. Como bem retrata Clarice Lispector: Brasília foi construída sem lugar para ratos, mas os ratos da parte endinheirada do Brasil dominam Brasília. "O inferno me entende melhor, reconhecia Clarice, mas os ratos, todos muito grandes, estão invadindo. Essa é a manchete invisível nos jornais. Aqui eu tenho medo. A construção de Brasília: a de um Estado totalitário...". “Brasília é a imagem de minha insônia”, afirmou. O Brasil da necrocracia de 2021, sem Clarice e feito Macabéa sem estrela e sem hora de alegria, continua a maltratar os nordestinos. País que afunda nas trevas do obscurantismo mais boçal e do ódio e da intolerância que se organizam como política de Estado.

04. Neste 08 de outubro de 2021, no Dia do Nordestino e como símbolo da combinação da luta coletiva, da educação libertadora e da sabedoria popular, penso em três brasileiros que imprimiram com as letras da dignidade o livro maior do Brasil de que devemos ter orgulho: da Paraíba, Elizabeth Teixeira (1925); de Pernambuco, Paulo Freire (1921-1997) e, do Ceará, Patativa do Assaré (1909-2002). Temos aí três nordestinos de três estados que formam um PPC de alto nível, um verdadeiro Projeto Político Coletivo. Dos três, segue viva e lúcida a paraibana Elizabeth Teixeira, com 96 anos de vida e luta completados em 13 de fevereiro de 2021. Uma brasileira e dois brasileiros que representam o que de mais integro há no plano da vida pessoal e coletiva. Três trajetórias existenciais que materializam o que Paulo Freire denomina de vocação ontológica. Vocação ontológica tecida pela luta coletiva dos camponeses, em Elizabeth Teixeira. Vocação ontológica vertida na pedagogia dialógica do oprimido, em Paulo Freire. Vocação ontológica traduzida na versatilidade dos versos da poética sábia e popular, em Patativa do Assaré.

05. Tive a honra de conhecer pessoalmente Elizabeth Teixeira em Manaus, AM, no dia 23 de agosto de 1985, no Salão Cidade de Manaus, do jornal A Crítica, quando veio lançar o documentário Cabra marcado para morrer, do Eduardo Coutinho. Para quem não sabe, queira anotar: trata-se do melhor documentário da produção cinematográfica brasileira de todos os tempos. Guardo comigo até hoje a fotografia que tirei ao lado de Elizabeth Teixeira, protagonista do documentário, e a mais importante liderança camponesa viva do Brasil. Iniciado e depois interrompido pela ditadura em 1964, esse documentário foi retomado e lançado em 1984. Elizabeth Teixeira é a demonstração ontológica do que Agnes Heller denomina de “invencibilidade da substância humana”. Após o assassinato de seu marido, João Pedro, em 02 de abril de 1962, Elizabeth Teixeira assumiu a liderança da Liga Camponesa de Sapé, na Paraíba. Quando do assassinato de seu companheiro, com quem teve 11 filhos, Elizabeth Teixeira disse: “Eu continuo a luta”.

06. De Paulo Freire, outro nordestino, cidadão do Brasil e do mundo, tive a alegria de ouvi-lo, no dia 06 de maio de 1982, quando esteve pela primeira vez em Manaus. À época cursava bacharelado em Filosofia e Teologia no antigo Cenesch, e licenciatura em Filosofia na Universidade do Amazonas (UA), hoje Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Neste 2021, no dia 19 de setembro, comemoramos com alegria e tristeza o centenário de nascimento de Paulo Freire. Tristeza por ver o maior educador deste país, nordestino da melhor fibra humana, ser objeto de agressão da mais arrogante ignorância que hoje ocupa os centros de poder de uma República em acelerado regime de decomposição institucional. Alegria por saber que Paulo Freire, sobrevivente do primeiro exílio que a ditadura empresarial-militar de 1º de abril de 1964 impôs a ele e a tantas e tantos brasileiros, também sobreviverá a este segundo exílio, porque já inscreveu seu nome no Grande Memorial da Vida daqueles que são imprescindíveis.

07. De Patativa do Assaré, nascido Antônio Gonçalves da Silva, o Brasil e o Nordeste só podem reter o melhor de sua impressionante memória e sabedoria poética. Se em Jesus de Nazaré o Verbo se fez Carne, em Patativa do Assaré foi a Carne, batida e rebatida, de mil-dores-e-sofrimentos, que se fez sabedoria em forma de cordel. Patativa do Assaré, pequena cidade do sul do Ceará que lhe deu nome e se tornou universal pelo canto de seu maior poeta popular, imprimiu verdade ontológica ao que Santo Agostinho afirma em seu Diálogo sobre a felicidade: a medida da alma humana está na sabedoria. E a melhor conclusão que o escrevinhador poderia dar a este texto só poderia vir da beleza poética do Grande Patativa:

Eu sou de uma terra que o povo padece,

Mas nunca esmorece, procura vencê,

Da terra adorada, que a bela cabôca

Com riso na bôca zomba do sofrê.


Não nego meu sangue, não nego meu nome,

Olho para a fome e pergunto: o que há?

Eu sou brasileiro, fio do Nordeste.

Sou Cabra da Peste, sou do Ceará.


*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos oito dias de outubro do ano do morticínio de 2021, no Dia do Nordestino.

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