Merecimento
- Professor Seráfico
- 28 de out. de 2021
- 2 min de leitura
Passo ao largo de discussão que parece remeter-nos ao dilema – quem veio antes, o ovo ou a galinha? Refiro-me à alardeada vida eterna, gozada no jardim das delícias, onde tudo é paz, alegria e felicidade. Lá, junto aos que se foram e na simpática companhia dos santos e anjos, o homem finalmente encontraria paz e felicidade. Esse paraíso, no entanto, quanto mais se aproxima dos humanos – mesmo os mais fervorosos divulgadores da Promessa -, mais os torna intranquilos, temerosos, frágeis. A vida para sempre, desejada e buscada desde que o Mundo é mundo desata o choro dos que veem seres amados dirigirem-se para lá. Torna-se indesejado o destino, não importa quanto tempo tenha sido gasto para mostrar-lhes quanto lá a vida (?) é melhor. Prefiro deter-me nas agruras, sofrimentos, alegrias, gozos que poderemos experimentar aqui, tantas quantas sejam as lágrimas a escorrer pelo vale que não escolhemos, mas onde tentamos fazer-nos vivos. Nele, bem ou mal, deixamos inscrita nossa própria história, ao mesmo tempo em que contribuímos para que a História seja um dia escrita. Nem sempre, é óbvio, escrita da forma que nos parece a melhor, nem a que mais testemunha bons e saudáveis sentimentos. Por uma razão muito simples: ao Homem assistem duas espécies de inspiração: a que reconhece em cada um a semelhança que torna todos parceiros postados na mesma nau e companheiros de viagem. Porque a vida não é mais que isso – uma viagem com porto de embarque, caminhos e destino. Os que têm diferente inspiração, disso não se dão conta, embora a nau seja a mesma. Com ela iremos ao fundo, podendo ser sucessivamente protelada a chegada ao leito raso e profundo de terras que não se sabe onde – nem se de fato existem. Sabê-lo, portanto, é tarefa que a viagem sugere. Vivemos, nestes dias de pandemia, não apenas o assédio de um vírus que tem servido, dentre tantos outros despropósitos, ao enriquecimento e à arrogância de alguns. Nada importa o número dos que passaram “desta para melhor”. Por tudo isso, e fiel ao que um dia o espanhol Ortega y Gasset afirmou, mostra-se impossível saudar e festejar o Dia do Funcionário Público, neste 28 de outubro de 2021. Categoria em acelerado processo de extinção, não pode um só dos que prestam serviços à sociedade rejubilar-se pela passagem deste dia. A nau por todos tripulada sofre o açoite dos que reservam todos os espaços para a satisfação de suas taras, eis que somente essa condição explicaria – sem justificar, obviamente – a voracidade e a maldade embutida no menor ato ou gesto hostil dos que se preparam apenas para a vida eterna. Como se sobre a lápide que os separará dos sobreviventes não fosse coberta com o manto irremovível e eterno (este sim!) do esquecimento. Merecidamente.
Comments