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Foto do escritorProfessor Seráfico

Maria Flor, vô Hideraldo e a História

José Ribamar Bessa Freire.

Taquiprati, 21 de Julho de 2024


No hay nada más vivo que un recuerdo.

(García Lorca. 1898-1936)

Niterói, 20 de julho de 2024

Querida Maria Flor,

Teu avô nos disse adeus. Neste sábado (20), às 18h00, foi celebrada a missa de 7º dia na igreja Nossa Senhora de Lourdes, no Parque Dez, em Manaus. Moro muito longe e não pude ir para me despedir dele e te conhecer pessoalmente. No entanto, graças à internet, podemos fofocar. Vamos trocar figurinhas: vou te lembrar o que ele aprontou antes de ser avô e tu me contas o que a neta aprendeu com ele nos seis anos de vida compartilhada. Combinado? Então, vamos lá.   

Conheci teu avô, em 1983, na sala de aula do velho ICHL. Eu acabara de chegar da Europa, lá vasculhei arquivos em busca de documentos sobre a Amazônia orientado pelo historiador Ruggiero Romano. Fui dar aulas justamente de História da Amazônia no recém criado Curso de História para a primeira turma que havia ingressado na UFAM, em 1981, que tinha apenas quatro alunos. Na hora “H”, surgiu mais um, que não estava inscrito. Era um magricela simpático e risonho. Adivinha quem era? Seu nome começa com a letra “H” de História.  

- Professor, o tema me interessa, posso assistir suas aulas como ouvinte?

A participação dele foi integral, não faltou sequer uma aula. No semestre seguinte, dei a mesma disciplina para a segunda turma, que tinha outros alunos, incluindo teu vô, desta vez com o nome oficialmente na lista de chamada. Ele trancou o curso de filosofia no 7º período para se dedicar com exclusividade à História. Confesso que sua presença ali me obrigou a novas leituras para acrescentar algumas novidades e não repetir as mesmas aulas. Sua nota final foi dez, porque não existe nota mil na universidade.

A militância

Quando chegou a vez da terceira turma - menina, tu não vais acreditar - eis que surge aquele que iria ser teu avô, pedindo para assistir outra vez História da Amazônia como ouvinte. Ele já conhecia de trás pra frente o conteúdo e a bibliografia. Impus uma condição: “Fica, mas vai me ajudar como se fosse estágio-docência”. Ele ficou. E ajudou. Muito. Pergunta do Balkar e da Luísa que eles te contam.

Fizemos amizade. O braço esquerdo e a perna direita do teu vô ligeiramente afetados por uma poliomielite contraída aos 6 meses, não o impediu, já adulto, de atuar no movimento estudantil, na luta pela qualidade do ensino, contra a desigualdade social, por um Brasil sem fome. Estava em todas. A pessoa doce que você conheceu virava fera diante da injustiça. Te mando foto em frente ao Bar Acadêmico, quando celebramos a vitória nas eleições diretas para reitor. Mas já que estamos fofocando, vale a pena falar da vida familiar.

Registrei aqui no meu blog, em setembro de 2006, o falecimento da tua bisa Amazonina, fiel leitora do Taquiprati. Não lembro bem do teu bisavô que – olha só a coincidência - era meu xará. Se tirasse o sobrenome do seu José Ribamar da Costa e ele ficasse de frente, eu podia aparecer como o pai. Quem não gostaria de ter um filho assim? O casal Amazonina - Ribamar teve dez:  seis mulheres e quatro homens, um deles teu vô nascido no beco São José, bairro de Educandos, indo morar depois perto da feira da Panair.

- Acho que por ter nascido neste bairro boêmio e popular, o Hideraldo só gostava de ouvir música em alto e bom som. Passar por esse mundo discretamente nunca foi uma opção pra ele, já que a alegria precisa ser compartilhada – me disse Deusa, tua avó. Educandos era pra ele o que o bairro de Aparecida é pra mim: o “o” do borogodó presente em todas as sílabas do coração. Embora fiéis a nosso berço, ambos mudamos para o Parque Dez.  Sua casa era perto da minha.

O acadêmico

Sempre dava carona pro teu avô quando ele era estudante. A gente saía do campus e ia jogando conversa fora durante o trajeto. Criamos um grupo de estudos com alunos, todos unidos na amizade e na paixão pela História da Amazônia, com a esperança de que assim contribuiríamos para melhorar a vida dos amazonenses. Produzimos coletivamente vários artigos, algumas traduções e dois livros. Vais estudar mais tarde em um deles adotado pelas escolas de Manaus: A Amazônia Colonial (1616-1798), que tem coautoria do teu avô. Avisa coleguinhas e professora: - Esse é meu vô.

Fez parte dos projetos do grupo uma viagem de barco a Coari – território dos Juma, onde o padre Samuel Fritz criou no séc. XVII um povoado. Lá buscamos a documentação nos arquivos cartoriais e da Prelazia com apoio logístico do CRUTAC – Centro Rural Universitário de Treinamento e Ação Comunitária da UFAM. Maria Flor, nem te conto, menina. Depois de um dia cansativo, à noite, num barzinho com música ao vivo, Hideraldo dançou com colegas e com as professoras Edinea e Regina. Você já viu teu vô dançar? Levava jeito.

O dançarino, filho do seu Ribamar, se graduou e entrou na vaga de docente que deixei na UFAM, em 1987, quando fiz concurso para a Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Ou seja, ninguém sentiu minha falta. Logo ele obteve os diplomas de mestre (1995) e de doutor (2002) pela PUC/SP. Pesquisou a Amazônia: os viajantes, os povos indígenas, as lutas sociais, a saúde e a doença no século XIX. Adorava dar aulas. Publicou livro e artigos, orientou pesquisas, participou de bancas, como informa Gerson Albuquerque no texto postado logo abaixo.

Sua vida acadêmica cresceu, quando deu sorte de casar com tua avó Deusa, historiadora, com quem viveu 37 anos. Ela foi a interlocutora sensível e inteligente, que pesquisou jornais operários amazonenses, documentos do Arquivo Público e da Associação Comercial e relatos de governadores do Estado para escrever, “do ponto de vista do soldado raso e não do comandante”, sua dissertação sobre os trabalhadores urbanos em Manaus no auge da borracha.

O avô

Aí nasceu tua mãe, Ana Christina, e alguns anos depois teu tio Guilherme. Mas quem ensinou o Hideraldo a ser avô foi você, que já sabe ler e escrever e foi alfabetizada na Escola Cueiras, que tem esse nome por causa de uma árvore de cuia, na qual a professora já subiu algumas vezes para te contar histórias. Agora é tua vez de contar o que viveu com ele. Te passo a palavra. É com você, Maria Flor.

 

Carta que Maria Flor um dia escreverá

Manaus, 20 de julho de 2024

Prezado José Ribamar

Vou falar do meu vô, primeiramente quando ele era ainda garoto, porque ele mesmo me contou suas travessuras, que eu ouvi. Depois conto o que vi, vivi e convivi.

Minha bisa Amazonina sempre estimulou a independência do filho, mas devido as sequelas da poliomielite recomendava que ele evitasse brincadeiras arriscadas. O conselho entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Intrépido, ele apostava corrida de bicicleta com os amigos, saindo da rua Vista Alegre rumo à Colônia Oliveira Machado, passando pelo aeroporto de Ponta Pelada e voando de volta para o Educandos.

Numa dessas, depois de um tratamento dentário muito caro de canal, ele desceu em sua bike pela Baixa da Égua. Sabe aquela ladeira desafiadora? Pois é. Desceu por ela em disparada para vencer a corrida, caiu de cara no asfalto e quebrou os dentes.

Outra vez foi comprar pão na padaria do português, seu Garganta, que era seu padrinho e perdeu o troco. Ele ficou chateado com a repreensão da bisa e se escondeu no Amarelinho, a família toda atrás, ele só apareceu na hora do almoço, porque sentiu fome.

Tem muitas histórias como essa, mas vou falar agora dele como avô carinhoso, paciente, engraçado, que me fazia rir, me acompanhava nos banhos de igarapés, brincava comigo, festejava o natal e os aniversários, me contava histórias, me levava à escola, eu gostava de ir pra escola com uma “cabeça de onça” que ele me deu.  Te mando fotos, uma delas da festa da escavação da piscina feita para mim.

O adeus

Não sei se te falei, Ribamar – posso te chamar de Babá? – um dia fiquei com dormência, queimação e fraqueza nas pernas, peguei uma tal de síndrome de Guillain Barré, e parei de andar. O vô ficou desesperado, deixou todos os seus afazeres para cuidar de mim. Acompanhou de perto todo o tratamento e as sessões de fisioterapia.

Quando meu vô foi internado no hospital, pedi da mamãe uma foto dele e montei um oratório com um abajur astronauta que replica o sistema solar no teto, um terço, duas velas e uma escultura de Nossa Senhora em madeira balsa feita pelos indígenas de São Francisco do Bujaru, em Iranduba. Minha mãe e eu rezávamos todas as noites pela saúde do “Bom Velhinho”, assim eu chamava meu vô. Era a hora de ele ir embora, mas a reza deixava a gente mais serena e confortada.

No velório, levei de casa flores do nosso Bougainville e uma Nossa Senhora de crochê, feita por minha prima Isadora, que foram sepultadas com ele. Fui ao enterro no Cemitério Recanto da Paz, em Iranduba, vestida com uma camisa do Bom Velhinho para ele permanecer mais um pouco comigo, no meu corpo.

A médica disse que foram várias as causas da morte: choque refratário, coagulopatia grave, hipertensão arterial sistêmica, distúrbio e sepse de foco abdominal. Não entendo nada disso. Para mim, ele não morreu. Se eu conhecesse esse poeta Garcia Lorca, diria que concordo com ele: “Não há nada mais vivo que uma memória”.

É isso aí. Meu vô está vivo na minha lembrança, porque não vou esquecer nunca o convívio com ele. Dizem que quando a gente mexe no baú das lembranças, as lembranças acabam mexendo com a gente. Estou muito mexida. Agora volto ao estúdio com você, José Ribamar.

Considerações finais

Quando faleceu o jesuíta Bartomeu Meliá, amigo querido, comentei com a antropóloga Marta Azevedo que era como se um pedacinho de cada um de nós tivesse sido sepultado com ele. Ela respondeu com a sabedoria dos guarani com quem viveu muitos anos:

- Estou saindo do enterro com a sensação inversa. É como se Meliá tivesse se distribuído para todos ñandé, para todos nós, e ele deixa uma parte dele comigo.

É isso. Levamos conosco uma parte do Bom Velhinho. De qualquer forma, peço às pessoas queridas que estão vivas, que se cuidem e morram depois de mim. Por favor. Cada vez tenho mais dificuldades de lidar com a morte de quem amo e admiro. Dessa vez fui salvo por Maria Flor – a Boa Netinha e pela serenidade da avó.  Sem elas, eu não saberia o que escrever.

Referências:1.Francisca Deusa Sena da Costa. Quando viver ameaça a ordem urbana: Trabalhadores urbanos em Manaus 1890-1915. Dissertação de Mestrado orientada por Heloísa Faria Cruz. São Paulo. PUC. 1997

2. Hideraldo Lima da CostaCultura, trabalho e luta social na Amazônia: discurso dos viajantes, século XIX.   Manaus. Editora Valer. 2013. 202 p.

3. José Ribamar Bessa: A história vista de baixo (24/11/1995). https://www.taquiprati.com.br/cronica/444-a-historia-vista-de-baixo

4. __________. As flores de Maio em Manaus (02/05/1995). https://www.taquiprati.com.br/cronica/509-as-flores-de-maio-em-manaus

5. __________. Geraldo Sá Peixoto: navegar nas águas do Rio Negro. (27/05/2018). https://www.taquiprati.com.br/cronica/1397-geraldo-sa-peixoto-navegar-nas-aguas-do-rio-negro

 

 

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