José Alcimar de Oliveira*
“Eu sabia que cidades eram construídas. Não fui até lá. Isto pertence à estatística, pensei. Não à história. Pois o que são cidades construídas sem a sabedoria do povo?”.
(Bertolt Brecht)
01. Sob a sociabilidade nada coletiva do capital – um péssimo construtor de cidades – a Manaus da Amazônia (ou a Amazônia de Manaus) se pós-modernizou sem que houvesse assimilado as conquistas básicas da modernidade: planejamento racional, racionalidade administrativa, organização política, isonomia social, cidadania como tempo e espaço da vida coletiva. O que a natureza ofereceu a Manaus o capital, desde cedo, cuidou de destruir. Manaus reúne, e de forma insanamente metódica, tudo o que depõe contra a vida de uma cidade. Nada do que faz da cidade uma cidade – como constituição política da alegria do viver comum – orientou o devir de Manaus. Da primeira grande teoria da cidade – A política –, escrita por Aristóteles, Manaus nada absorveu, nem mesmo para reparar os equívocos do estagirita.
02. Neste dia 24 de outubro de 2023, nos 354 anos de nossa tão agredida cidade de Manaus, recomendo a leitura, publicada no site afinsophia.org, do artigo do filósofo itinerante Marcos José, que mobiliza Filosofia e Psicanálise para objetivar e esconjurar os maus espíritos que atormentam e acinzentam a vida de nossa cidade. É preciso dizer, sem meias palavras ou concessão à mediocridade de seguidos governantes, que a Manaus que odeia a si mesma e se envergonha de sua alma indígena não é comensurável à cidade-pólis-Manaus, que resiste à ordem insana, com seu espírito guerreiro e alegre, com sua vida comunal, que ainda cultivamos no contracurso da ação arrivista e mercenária do capital e de seus agentes adoecidos, feitores de necrópolis.
03. Já é tempo, e haja tempo, de Manaus romper com o ritmo ridículo de cidade sem cidadania, regida pela ação emergencial, mas muito bem estruturada, de quem só conhece o tempo curto da ganância e do lucro acima da vida. Sob a arrogância financeira da baixa política até quando Manaus sobreviverá ao colapso (ambiental, social e político) produzido por sua classe dominante? Vem de Aristóteles, um Filósofo comedido até à desmesura, a observação de que os ricos são bem mais perigosos para a cidade do que os pobres, que de fato são os verdadeiros construtores das cidades de que são expulsos. Ricos querem condomínios, apartados e protegidos (até quando?) dos pobres, sempre expropriados da cidade e da cidadania.
04. Neste outubro em curso foi da generosidade da natureza e não da cultura produzida pelo valor de troca, que a tudo venaliza e mercantiliza, que Manaus recebeu as chuvas que parcialmente repararam os crimes, a cada dia mais intensos e abrangentes, produzidos pela ordem do capital, que converte o ar da vida em mortífera e sufocante fumaça. O negacionismo fanático e criminoso, religioso e político, numa parceria entre ignorância e oportunismo, logo se desdobrou para blindar as agressões do insustentável padrão de produção e consumo da voracidade capitalista. Mas até quando a natureza, sem direito à defesa, poderá se defender e nos defender dos crimes do capital? É desigual a luta da vida da natureza contra as forças da cultura da morte.
05. Aos inimigos da cidade, da vida comunal, a essa gente de alma pequena, aos governantes do nada, escudados pela violência do poder sem saber, Manaus nada deve, porque deles nada recebeu. A crise que se abate sobre a Amazônia de Manaus é a crise da civilização do capital. O grande erro é tomar a civilização do capital como único e natural destino da civilização do ser social. No mundo do ser social não há teleologia dada, apenas teleologia posta. Seremos o que fizermos ou deixarmos de fazer. A natureza somente pode pensar, falar e agir a partir do que pensamos, falamos e agimos. A natureza, com seu ritmo, seu tempo e modo de ser, não precisa de nós. Continuará seu curso e poderá se refazer das agressões que imprimimos em seu corpo inorgânico e orgânico, do qual procedemos.
06. Superar a crise civilizatória produzida pelo predatório sociometabolismo do capital exige que a unidualidade natureza-cultura seja pensada a partir de uma incontornável racionalidade ambiental. A Amazônia de Manaus não é um capítulo menor nessa emergente e necessária reconfiguração paradigmática. Grandes desafios exigem grandeza de espírito e visão dialética de totalidade. Desde Platão aprendemos que ser dialético é ser capaz e pensar o todo, quem não for, jamais será. Continuará a ver o mundo com olhos umbilicais. O desafio que se põe à Amazônia de Manaus, por força de sua centralidade geopolítica, é o de, pela afirmação de um paradigma ambiental e anticapitalista, subtrair ao capital o poder de decidir sobre um presente que há muito já se projeta sem futuro.
07. Sendo a mais importante metrópole da Amazônia Ocidental, capital do mais indígena dos estados brasileiros e cercada pela mais rica e complexa estrutura de biodiversidade do planeta, o que falta, afinal, à Amazônia de Manaus para romper com a distopia capitalista pós-moderna, vazia de futuro e carente de alma, e assumir sua condição geoestratégica de Pólis Ambiental do século XXI? Até quando Manaus continuará de costas para o destino ontodialético de seu perfil natural, social, indígena, caboclo, cosmopolita, enfim? O futuro da Manaus dos nossos sonhos, generosa, alegre, viva, à margem do belo rio Negro, que geometriza sua geografia, não cabe na distopia que o capital, intrinsecamente necrocrata, promove sobre o seu presente. Somente onde há vida haverá luta pela vida.
Estou contigo, Manaus, sempre!
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* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, base da ADUA – Seção Sindical. É filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe.
Em 24 de outubro de 2023, nos 354 anos da cidade de Manaus.
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