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LIVROS DE CABECEIRA


Odenildo Sena

Livros de cabeceira são aqueles que, depois da primeira leitura e por alguma ou algumas razões, passam a se tornar tão importantes em nossa vida, assim como se fossem membros queridos da família. Eles não se afastam da gente. A gente não consegue se afastar deles. Eles não tiram o olho da gente. A gente não tira o olho deles. Estão sempre à nossa espreita. E nós sempre à espreita deles. Se duvidar, eles perseguem a gente na sala, na varanda, na cozinha, no banheiro. Houve um tempo, lembro-me bem, em que “O crime do padre Amaro”, de Eça de Queiróz, passou semanas – sei lá quantas – abancado, ao alcance da mão, na parte mais solitária do banheiro de casa. Li e reli tantas vezes, que ele acabou por perder o status de livro de cabeceira e se recolheu a um canto pouco visitado da estante. Sim, porque há livros de cabeceira temporários! Esses não são bem membros da família. São como bons amigos que um dia, pelas circunstâncias da vida, têm que partir em busca de outras aventuras e levar sonhos e desafios para outros leitores.

Mas os livros de cabeceira de verdade nunca nos abandonam. Se a gente se muda de casa, eles se mudam com a gente, como filhos que grudam na saia da mãe, sabendo que ali é seu porto seguro. E eu sei bem como é isso. Tenho um longo histórico de arribações, desde os tempos em que, ainda solteiro, eu não largava a saia de Mãe. Por nunca ter tido uma casa própria e ter vivido sempre de aluguel, Mãe e seus rebentos chegamos a morar em quase todas as ruas do bairro de São Raimundo. E naquelas tantas mudanças, meus poucos e primeiros livros de cabeceira já eram tratados com carinho e zelo, gestos dos quais nunca abri mão até hoje.

O fato é que os livros de cabeceira de verdade nunca nos abandonam. Mesmo que a gente se mude não apenas de casa, mas de Continente. Tanto que antes da minha mais recente mudança, desta vez para Portugal, passei dias e dias arrumando livros em várias caixas de papelão para serem doados aos amigos e a bibliotecas (Já falei noutro momento que tive um lampejo de desapego e me desfiz de pelo menos 90% dos livros que reuni desde que me entendo por leitor). Mas meus livros de cabeceira foram os primeiros a ser acomodados em uma caixa que eu tive o cuidado de revestir com plástico-bolha, para que eles tivessem o máximo de conforto durante a longa travessia do Atlântico no porão de um navio. De alguns poucos não tive sequer coragem de me afastar por mais tempo. Aconchegados e protegidos entre as peças de roupas que trouxemos em três malas, nos acompanharam na viagem de avião.

Hoje convivem aqui pertinho de mim. Isso mesmo! Vivo cercado por eles. Porque livros de cabeceira devem ficar sempre ao alcance das mãos, para qualquer emergência. Porque livros de cabeceira de verdade mesmo são aqueles que nunca se cansam da gente e a gente nunca se cansa deles. São aqueles de riqueza inesgotável que a cada releitura (não importa quantas sejam) nos movem o coração e a alma e nos dão a certeza de que a vida pode, sim, ser reinventada. Manuel Bandeira e seu “Estrela da vida inteira”, por exemplo, vivem perto de mim há 47 anos e continuam me renovando a cada vez que descanso o olhar em uma das páginas do livro. Mais novo, dentre meus livros de cabeceira, é “Obra poética”, de Sophia de Mello Breyner Andressen, ao alcance de minhas mãos há quatro anos.

Estou agora a resgatar na memória de longo prazo que, muito jovem ainda, eu já tinha meus poucos e primeiros livros de cabeceira. Me lembro bem de três volumes de capa dura lindamente encadernados que Mãe comprou para mim em seis prestações religiosamente pagas com um pedaço do seu parco salário de servente da Santa Casa de Misericórdia. Eu tinha o maior ciúme deles, não tanto pela importância que tiveram para a minha formação inicial de leitor, mas sobretudo pelo sacrifício que aquela empreitada representou no minguado salário-mínimo de Mãe. Os três volumes reuniam obras das diferentes fases dos nossos poetas românticos. Me lembro, ainda, que as folhas dos livros eram na cor sépia e os poemas apareciam emoldurados como se fossem quadros com obras de arte de grande valor. Aqueles foram meus primeiros livros de cabeceira e meu primeiro encontro com os poetas do Mal do Século, que tanto impressionaram meu sensível espírito juvenil com a paixão, a dor e o sofrimento daqueles versos.



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