Orlando SAMPAIO SILVA
Esta é uma questão que não tem a ver com ser ateu, “atoa”, crente, deísta. Não se trata de uma reflexão do campo da teologia, mas, sim, no da antropologia cultural.
A concepção criacionista da humanidade (ou do povo judeu) se insere entre os diversos mitos sobre as origens de diversos e diferentes povos. Os assim denominados heróis fundadores estão presentes nas mitologias heroicas de muitos povos, sempre se reportando aos seres sobrenaturais e poderosos, deuses, que criaram esses povos.
Entre os povos indígenas é geral a existência das narrativas míticas referentes aos entes míticos que os criaram.
Conforme o Velho Testamento (Torá/Talmude e Alcorão), O Deus dos judeus e dos cristãos é o mesmo deus dos árabes (Alá). Este herói fundador que teria dado origem à humanidade (ou, mais especificamente, a Adão e Eva) diferenciou-se dos deuses de outros povos.
Qual foi o processo histórico no qual se efetivou essa diferenciação? Vejamos. O “pai eterno”, que foi adotado pelas religiões cristãs, particularmente, o catolicismo, nos Tempos Antigos se perpetuou ao longo da história. Porém, de forma diferente do que ocorreu com os “pais fundadores” de outros povos e de outras religiões. Na Antiguidade, cada povo tinha a sua religião particular. Nos grupos indígenas, ao longo dos tempos, cada qual possui seu mito de origem e seus heróis fundadores. Porém, o cristianismo se tornou uma religião de caráter universal, que veio a se tornar hegemônica no Mundo Ocidental, inclusive, durante muitos séculos, no âmbito do poder político. O Deus cristão/católico foi erigido à condição de criador da humanidade (e não apenas de um povo, o judeu) e, como tal, passou a ser cultuado em meio a todos os povos em que atuava a missão evangelizadora.
No Velho Testamento, está a narrativa criacionista: No Livro do Gênesis consta que Deus criou Adão e Eva, que deram origem a uma descendência, na qual, dez gerações depois do primeiro casal, encontra-se Noé. Aos filhos deste - Jafé, Cam e Sem, teria sido concedida a atribuição fundadora de povos, origens dos diferentes povos que vieram a povoar a Terra. Além dos filhos de Noé, outras personagens bíblicas também foram instituidoras de povos. Canaã, filho de Cam e neto de Noé, foi o pai fundador dos Etíopes. Abraão é biblicamente considerado não apenas o pai fundador dos Hebreus, mas, também, dos Árabes. Os filhos de Abraão com sua segunda esposa Quetura, cujos nomes eram Zinrã, Joesã, Medã, Midiã, Jisbaque e Sua se tornaram chefes de tribos árabes. Também, o filho de Abraão com a concubina Hagar, denominado Ismael, teve 12 filhos que foram príncipes árabes. Notar para o número cabalístico 12! Esta também foi a quantidade de filhos de Jacó, cada um dos quais (exceto José, mas, sim seus dois filhos) instituiu uma das 12 tribos, que foram as células máter do povo judeu. Os Amonitas foram fundados por Bem-Ami, filho (adulterino) de Ló com sua filha Tamires; a etnia dos Moabitas foi instituída por Moabe, filho (adulterino) de Ló com sua filha Paltith. Esaú, filho do patriarca Isaac, foi o pai fundador do povo Edomita.
As religiões desses povos, à exceção dos Hebreus/Judeus e dos Árabes, eram politeístas. Os Hebreus/Judeus e os Árabes eram (e são ainda hoje) monoteístas. Porém, o povo Hebreu/Judeu, enquanto tal, apenas veio a ser constituído como uma grande coletividade étnica a quando da formação das 12 tribos que correspondiam aos 12 filhos do patriarca Jacó (também chamado Israel) (cf. acima). A religião hebraica veio a ser fundada pela ação de Moisés, séculos depois da constituição das 12 tribos. A religião de Moisés era a religião do povo judeu, como o é nos dias atuais.
O cristianismo, fundado pelo judeu Jesus, foi uma heresia em meio ao Judaísmo (religião judaica), que teve a sua expansão para outros povos devida à ação apostólica de são Paulo ou Saulo, outro judeu, que levou a nova religião a outros povos, principalmente a Roma, o império colonial dominante, à época, onde, séculos depois, veio a tornar-se a religião hegemônica.
Poderosa cultural, religiosa, política e economicamente, a Igreja cristã-católica pôde contar com teólogos-filósofos, como os ditos “padres da Igreja”, tais como os paradigmáticos santo Tomás de Aquino e santo Agostinho, que constituíram toda uma teoria/teologia do Deus único, poderoso, criador e universal, e, concomitantemente, no culto cristão, originaram-se monumentais obras nas artes plásticas, produzidas por notáveis artistas, pintores, escultores e arquitetos, que criaram, nas artes, a concepção imagética de um universo estético e cultural com a figura resplandecente de Deus, o Criador, de Maria, a mãe de Jesus, deste e dos demais santos, da Igreja, na riqueza dos seus templos e de todo um sistema religioso universal e hegemônico.
Porém, esse fausto erudito e criativo do catolicismo constituiu-se de forma diferenciada no âmbito das conceções dos mitos criacionistas, como tantos outros existentes, tendo uma característica diferenciadora básica no seu caráter monoteísta e a busca da universalidade.
Cada grupo religioso tem seus próprios deuses. A hegemonia cristã monoteísta é uma circunstância histórica. Ou, ao contrário, o cristianismo se tornou hegemônico por ser o Deus cristão o único Deus verdadeiro, criador do universo e dos seres humanos? A complexidade da vida no universo, na natureza, assim como no microcosmo humano é o produto do acaso evolucionista ou há uma força constituidora maior e inexplicável que a forjou? Esta é uma questão de fé ou é uma questão científica? Teológica? Filosófica?
Cabe aos antropólogos o estudo das culturas dos povos e, nestes, suas mitologias, inclusive, os “mitos originários e fundadores”, em ações sistemáticas de observação e de registros científicos.
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