Alcimar de Oliveira *
Quanto menos a força muscular foi aplicada às máquinas colossais, quanto mais as pontas dos dedos e os movimentos oculares foram motora e refinadamente alinhavados a aparelhos microeletrônicos, mais se destaca para qual direção a transformação da exploração aponta: para a exploração da concentração (Christoph Türcke).
01. Em tempos de pós-verdade, de supremacia do virtual sobre o ontológico, apostar na sensação é a saída mais fácil, sedutora e eficiente para subtrair direitos e manter corações e mentes em estado de permanente contentamento. Se é possível substituir o direito universal à educação pela sensação de que se pode educar por meio da falácia do ensino a distância, seletivamente reservado ao andar de baixo, por que defender e despender energia com a educação presencial? Além do mais, na via da sensação o retorno é imediato e garantido. Lucrativo, sobretudo. Apostar no poder da sensação, mais do que sensação de momento, converteu-se em estrutura permanente de domesticação cognitiva. Sentir é bem mais agradável do que pensar. A época da pós-verdade “corrigiu” o erro cartesiano, e trabalhoso, de derivar a existência do pensamento. Aliás, a pós-verdade, justiça epistêmica seja feita, conseguiu pelo recurso à sensação – o agora sinto, logo existo – impor um golpe inflexivo e demolidor à compreensão do cogito em Descartes, Kant, Hegel e Marx. Afinal, conceito não excita, pensar é penoso e viver (segundo o Rosa) é perigoso.
02. Se pudesse e tivesse um mínimo domínio dessa arte, ou artifício, e não fosse eu tão impermeável à epistemologia epidérmica da sensação, em lugar deste escrito em sete reflexões e tecido por conceitos, recorreria a recursos menos cefálgicos para exprimir o que penso em caracteres sensitivos. Quem me salvará dessa aporia? Recorri ao meu mestre franciscano medieval Guilherme de Ockham, a quem se atribui a famosa navalha epistêmica da redução conceitual – não se deve multiplicar conceitos sem necessidade –, sem que obtivesse, por inabilidade minha, nenhum progresso no manejo dessa refinada arte. O máximo que consegui se limitou à redução do título deste escrito – FILOSOFIA, TEMPO E SENSAÇÃO – mais premido por exigências editoriais do que propriamente por atender à recomendação da navalha epistêmica atribuída ao célebre franciscano.
03. Sempre me iludiu o poder dos títulos, não os acadêmicos, mas os de um simples artigo. Sinto-me inseguro em escrever o que quer que seja sem o abrigo de um título. Por conta dessa crença, ao titular algo, invariavelmente agrido o princípio lógico, e também dialético, de que se alargamos a extensão, comprometemos a compreensão. E vice-versa. Termino cedendo à extensão. Estou longe de chegar à maestria estilística e substantiva de um Graciliano Ramos. O seu Vidas secas é paradigmático para mim. O que falsamente me conforta é que nem o Velho Graça escapou dessa armadilha. É de conhecimento comum que o título inicialmente pensado para Vidas secas era Um mundo coberto de penas. Seria uma pena encontrar este romance abrigado sob título tão esvoaçante e anêmico. Se for possível pensar em título perfeito, Vidas secas é uma referência incontornável. Dez caracteres que concentram à perfeição o vínculo ontológico entre título e obra.
04. Escritor substantivo, perito na arte de reduzir ao essencial da linguagem a transposição do mundo para os códigos da escrita literária, Graciliano Ramos, da estirpe dos grandes comunas brasileiros, seguramente seguiu a recomendação de Ockham sem que tivesse mantido relação conhecida com o velho franciscano. Arriscaria a dizer que provavelmente viesse a se interessar, não sem alguma reserva, pela obra do frankfurtiano Christoph Türcke, Sociedade excitada: filosofia da sensação, da qual extraí a epígrafe destas notas filosóficas. Türcke em crítica filosófica explícita dialoga com o texto de Graciliano que, na inerência da secura do estilo e do conteúdo, recusava, avant la lettre, a medida pós-moderna da apreensão sensitiva do real. A pobreza de mediações e o consequente mutismo das vidas de Vidas Secas, de Graciliano, tanto quanto os excessos da abrangente medida epidérmica e excitativa da pós-verdade, objeto da Filosofia da sensação de Türcke, se constituem em formas cognitivas de aprisionamento.
05. Segundo Türcke, “uma pessoa se torna o que é por meio daquilo que ela reúne, daquilo que ela concentra. Concentração é o seu âmago. Mas ela não lhe “pertence”, tal como um nariz ou uma camisa”. Em diálogo com Türcke, e no itinerário de sua reflexão filosófica, penso que concentração é tempo mobilizado, é tempo que nos move, de forma autônoma ou heterônoma. O que concentra a atenção pode igualmente libertar ou aprisionar. A concentração como “excitação ligada” é uma forma de heteronomia cognitiva. Agarrado pela sensação, ou “distração concentrada” (Türcke), o sujeito acostuma-se a cultivar a “si mesmo sem si mesmo”, conforme nos diz Adorno, mestre de Türcke. É preciso dizer que distraídos não venceremos. Perde a posse de si mesmo o sujeito quando o que preside sua concentração subtrai ao tempo sua potência reflexiva.
06. Segundo Kant, o tempo, como forma a priori da sensibilidade, é o operador de nossa experiência interna. Pensador necessário e incontornável quando se trata de definir o modo humano que estrutura o fenômeno do conhecimento, a compreensão da razão em Kant, é preciso dizer, ficaria a meio caminho, limitada a um complexo formal e abstrato, se a ela não fosse agregado o constitutivo fundamental da práxis. Devemos a Marx o passo epistemológico fundamental para a compreensão desse devir. Mas devemos reconhecer também que, mesmo em sua constituição formal e abstrata, o tempo em Kant não é o da sensação pós-moderna. É forma de sensibilidade, abstrata e formal sim, mas da alçada da interioridade. A considerar esse itinerário filosófico devedor da afirmação do cogito de Descartes, que se dialetiza de forma abstrata em Kant, posto que numa dialética ainda carente de história, que se historiciza em Hegel, mas num devir histórico idealmente movido, é somente na tradição da dialética materialista e histórica, marxiana e marxista, que o tempo se reconcilia com o homem como ser social. Fora da ontologia social só há lugar para a experiência do tempo em sua forma alienada e alienante de “distração concentrada”.
07. O que quer que seja e que haja e poderá ter havido antes e haverá após o que somos enquanto realidade hominizada, nunca o saberemos. Apenas sabemos que o que designamos por natureza nos preexiste, nos constitui e a nós subsistirá. O mito do capital nos infesta com a ideia de que podemos prescindir da natureza e à custa de sua destruição edificar uma segunda natureza, superior e abstraída da finitude. Ao contrário da estrutura mítico-sapiencial dos povos originários, não enraizada na dicotomia natureza-cultura, em que o tempo da vida não se aparta do tempo da natureza, o mito do cientificismo positivista, base do sistema capitalista, sacrifica a temporalidade e a finitude por meio da ideologia do instante experimentado como eterno-presente. Para escapar ao tempo como “distração concentrada”, que simultaneamente destrói o tempo da natureza e priva o ser social da medida do tempo como espaço da formação humana, o que nos cabe é trazer o tempo para os trilhos da práxis. Desde Manaus, no centro da Amazônia Ocidental, é preciso imprimir no devir histórico a verdade de que o tempo da Amazônia não foi, não é e nunca será solúvel no tempo do capital.
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* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões (em Manacapuru - AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus, AM, aos
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