FILÓSOFO JOSÉ ALCIMAR: JESUS, LÁZARO E A NECROCRACIA DO CAPITAL
- Professor Seráfico
- 20 de abr.
- 11 min de leitura

Cristo, no fotograma do cinema O Evangelho Segundo São Matheus, do cineasta Pier Paulo Pasolini.
José Alcimar de Oliveira*
Proclamar que “o mundo não é uma mercadoria” quer dizer que a concorrência tem seus limites, que os benefícios atribuídos à mão invisível do mercado estão longe de compensar os crimes de seu punho visível e que o valor mercantil e monetário não é a medida de todas as coisas. A única lógica realmente alternativa seria a do serviço público e do bem comum, do direito imprescritível ao patrimônio comum da humanidade, quer se trate dos recursos naturais (a terra, a água, o ar), dos medicamentos ou dos conhecimentos acumulados ao longo dos séculos e das gerações (Daniel Bensaïd).
01. A morte é a condição ontológica incontornável do ser humano. Nascer é contingente. Quem nasceu poderia não ter nascido e, em alguns casos, o não ter nascido seria um favor à humanidade. Mas o morrer é da instância do necessário para todo ser contingente, porque o ser da existência humana é inexoravelmente ser para a morte, já sentenciava Heidegger. Segundo sentencia a Imitatio Christi, a miséria é a condição necessária da finitude: “Miserável serás em qualquer lugar onde estiveres e para onde quer que te voltes”. A morte está inscrita na vida e se morre desde o nascer. A ontologia existencial de Heidegger, contudo, não deve servir de pretexto ideológico para quem faz da morte um projeto de poder sobre a vida do ser, natural, animal ou social, seja como indivíduo, seja como espécie. Marx via na morte a vitória da espécie sobre o indivíduo. Mas até quando, a considerar a necrocracia do sistema do capital, a espécie poderá sobreviver ao indivíduo? Além do mais, a morte de cada indivíduo, não como condição ontológica e necessária, mas antes como produto sistêmico e contingente da destrutiva ordem capitalista, não onera toda a espécie?
02. Se o capital, como escreve Marx, implica a morte das duas fontes de toda a riqueza, “a terra e o homem”, que sobrevida poderá restarà espécie humana sob o predatório modo de produção capitalista da existência? O século XXI já inscreveu a humanidade na fase (definitiva?) da catastrofera. O atual processo de colapso ambiental e de barbárie social, com sua visibilidade globalizada, está a desnudar a grande farsa do sistema do capital: salvar da morte o indivíduo (da grande burguesia) à custa da morte do ser como espécie (a classe trabalhadora, no caso). É possível (e até quando?) construir o paraíso para alguns à custa do inferno para todos? Não há, mesmo no mais remoto horizonte, nenhum plano alternativo (e factível) ao nosso maltratado mundo sublunar, como é vendido pela mentira muskiana dos projetos de colonização além-Terra. O mundo, tornado a cada dia mais imundo pelo sistema do capital, tornou-se hostil à Terra e às formas de vida que nela se desenvolveram.
03. Ou a inteligência humana e seus recursos (teóricos e práticos) são orientados para salvar a vida na Terra, ou prevalecerá a barbárie já em curso. Diante do célebre dilema de Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie, o irredentopensador marxista István Mészáros, cujo pessimismo da inteligência diante da distopia capitalista já condicionava sua força volitiva e intelectiva, limitou-se a dizer: “barbárie, se tivermos sorte – no sentido de que o extermínio da humanidade é um elemento inerente ao curso do desenvolvimento destrutivo do capital”. A característica prevalente do poder do capital é a entropia, que se alimenta da desorganização e da destruição da vida. É a direção à barbárie que orienta a marcha de seu vetor teleológico. Estamos a caminho da Leônia de Italo Calvino, cidade distópica, descrita em seu As cidades invisíveis, cuja medida da riqueza era avaliada pela quantidade de coisas descartadas nos lixões. O consumo conspícuo do obsceno luxo de poucos produz, em ritmo industrial, o lixo indecente que sufoca a vida dos deserdados da Terra.
04. No plano da existência do ser social como indivíduo não há cura, a não ser aquela atribuída ao tempo, para a dor da perda de uma vida pessoal. A afirmação marxiana da morte como vitória da espécie sobre o indivíduo, embora verdadeira, não serve de consolo para ninguém, seja ateu, agnóstico ou crente. Não há remissão no imediato do acontecimento (ou mesmo no tempo remoto, conforme cada situação vivida) paraquem vive a dor da morte de quem lhe é próximo ou familiar. Quem afinal chorou diante da morte de Lázaro, o humano Jesus de Nazaré ou o divino Cristo da fé? Ou os dois? Não ensina a teologia cristã que o Nazareno era habitado pelas duas naturezas? Como é impossível um choro abstrato ou metafísico, e se Deus de fato chorou, só poderia fazê-lo pelo rosto humano de Jesus de Nazaré. Na Bíblia há três referências explícitas de que Jesus chorou, e cada uma manifesta um sentido próprio. O choro-compaixão pela morte do amigo Lázaro, o choro-lamento sobre a cegueira de Jerusalém e o choro agônico no monte das Oliveiras.
05. O choro-lamento de Jesus de Nazaré diante da morte de seu grande amigo Lázaro encontra-se em Jo 11, 35, naquele que é o mais curto versículo bíblico: “Jesus chorou”. Jesus chora a morte de Lázaro e igualmente chora pelos familiares e amigos entristecidos e desolados diante do acontecimento. Marta, irmã de Lázaro, que bem conhecia o quanto Jesus amava seu irmão, se dirige a Jesus e, desolada, diz: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. A despeito de crer na promessa bíblica da ressurreição do último dia, Marta permanece inconsolável. Embora muito cresse nas palavras do bom Nazareno, a promessa da ressurreição do último dia era para Marta apenas um consolo metafísico. Mesmo a incorrer em anacronismo, pois direita e esquerda não eram conceitos do mundo semítico de Jesus, Marta jamais seria vista como uma pobre de direita, menos ainda pobre de direitos. Para sua intuição materialista, a promessa transcendente da ressureição futura não servia de consolo para a morte real e vivida no plano da imanência, diante da perda de seu irmão Lázaro.
06. Cabe a pergunta: a morte como a vitória da espécie sobre o indivíduo, conforme sinaliza o texto marxiano, pode servir de consolo para um materialista? E tal consolo não seria mais metafísico do que materialista? Marta era humana, demasiadamente humana, e quem poderia acusá-la de egoísmo materialista por cobrar de Jesus de Nazaré a restituição da vida de seu irmão Lázaro, em corpo e alma? Se Jesus fosse um metafísico e se limitasse à compreensão abstrata do sofrimento, não teria ouvidos para o clamor de Marta. Bem o contrário. Segundo narra o evangelista, “Jesus, então, comovido em seu íntimo, veio ao sepulcro… e gritou com voz forte: ‘Lázaro, vem para fora!’”. E a vida de Lázaro foi devolvida. E houve ali muita alegria e espanto. Judeu como Jesus, Marx teria em Marta um quadro o mais militante, lúcido e pedagógico para compreender que não é possível salvar a classe sem salvar o indivíduo.
07. A cada ano a celebração cristã da Páscoa como passagem da morte para a vida cede lugar à multiplicação dos corredores da morte construídos pela necrocracia do capital. O capitalismo se faz religião (Walter Benjamin) e a religião legitima e faz do altar o lugar do lucro, da acumulação e da posse a mais indecente: “E agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos por causa das desgraças que virão sobre vós! Vossas riquezas estão podres e vossas vestes devoradas pela traça” (Tg 5,1-2). Estreita-se ano a ano, para o ser natural e para o ser social, a saída pascal que deveria conduzir à vida. Como celebrar a Páscoa num mundo que se move pela força da morte, no campo e na cidade? Ontem como hoje, ressoa o lamento de Jesus de Nazaré: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis congregar teus filhos como a galinha congrega suas crias sob as asas, mas não quisestes!” (Mt23,37). Para concluir com a bela e profana teologia de Walter Benjamin: nem os mortos estarão em segurança se o inimigo (o capital) vencer. E Jesus, mesmo Ressuscitado, estaria em segurança numa tão aguardada segunda volta(Parusia)?
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical, e filho do encontro dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus, AM, aos 20 de abril de 2025, na Páscoa.
Cristo, no fotograma do cinema O Evangelho Segundo São Matheus, do cineasta Pier Paulo Pasolini.
José Alcimar de Oliveira*
Proclamar que “o mundo não é uma mercadoria” quer dizer que a concorrência tem seus limites, que os benefícios atribuídos à mão invisível do mercado estão longe de compensar os crimes de seu punho visível e que o valor mercantil e monetário não é a medida de todas as coisas. A única lógica realmente alternativa seria a do serviço público e do bem comum, do direito imprescritível ao patrimônio comum da humanidade, quer se trate dos recursos naturais (a terra, a água, o ar), dos medicamentos ou dos conhecimentos acumulados ao longo dos séculos e das gerações (Daniel Bensaïd).
01. A morte é a condição ontológica incontornável do ser humano. Nascer é contingente. Quem nasceu poderia não ter nascido e, em alguns casos, o não ter nascido seria um favor à humanidade. Mas o morrer é da instância do necessário para todo ser contingente, porque o ser da existência humana é inexoravelmente ser para a morte, já sentenciava Heidegger. Segundo sentencia a Imitatio Christi, a miséria é a condição necessária da finitude: “Miserável serás em qualquer lugar onde estiveres e para onde quer que te voltes”. A morte está inscrita na vida e se morre desde o nascer. A ontologia existencial de Heidegger, contudo, não deve servir de pretexto ideológico para quem faz da morte um projeto de poder sobre a vida do ser, natural, animal ou social, seja como indivíduo, seja como espécie. Marx via na morte a vitória da espécie sobre o indivíduo. Mas até quando, a considerar a necrocracia do sistema do capital, a espécie poderá sobreviver ao indivíduo? Além do mais, a morte de cada indivíduo, não como condição ontológica e necessária, mas antes como produto sistêmico e contingente da destrutiva ordem capitalista, não onera toda a espécie?
02. Se o capital, como escreve Marx, implica a morte das duas fontes de toda a riqueza, “a terra e o homem”, que sobrevida poderá restarà espécie humana sob o predatório modo de produção capitalista da existência? O século XXI já inscreveu a humanidade na fase (definitiva?) da catastrofera. O atual processo de colapso ambiental e de barbárie social, com sua visibilidade globalizada, está a desnudar a grande farsa do sistema do capital: salvar da morte o indivíduo (da grande burguesia) à custa da morte do ser como espécie (a classe trabalhadora, no caso). É possível (e até quando?) construir o paraíso para alguns à custa do inferno para todos? Não há, mesmo no mais remoto horizonte, nenhum plano alternativo (e factível) ao nosso maltratado mundo sublunar, como é vendido pela mentira muskiana dos projetos de colonização além-Terra. O mundo, tornado a cada dia mais imundo pelo sistema do capital, tornou-se hostil à Terra e às formas de vida que nela se desenvolveram.
03. Ou a inteligência humana e seus recursos (teóricos e práticos) são orientados para salvar a vida na Terra, ou prevalecerá a barbárie já em curso. Diante do célebre dilema de Rosa Luxemburgo: socialismo ou barbárie, o irredentopensador marxista István Mészáros, cujo pessimismo da inteligência diante da distopia capitalista já condicionava sua força volitiva e intelectiva, limitou-se a dizer: “barbárie, se tivermos sorte – no sentido de que o extermínio da humanidade é um elemento inerente ao curso do desenvolvimento destrutivo do capital”. A característica prevalente do poder do capital é a entropia, que se alimenta da desorganização e da destruição da vida. É a direção à barbárie que orienta a marcha de seu vetor teleológico. Estamos a caminho da Leônia de Italo Calvino, cidade distópica, descrita em seu As cidades invisíveis, cuja medida da riqueza era avaliada pela quantidade de coisas descartadas nos lixões. O consumo conspícuo do obsceno luxo de poucos produz, em ritmo industrial, o lixo indecente que sufoca a vida dos deserdados da Terra.
04. No plano da existência do ser social como indivíduo não há cura, a não ser aquela atribuída ao tempo, para a dor da perda de uma vida pessoal. A afirmação marxiana da morte como vitória da espécie sobre o indivíduo, embora verdadeira, não serve de consolo para ninguém, seja ateu, agnóstico ou crente. Não há remissão no imediato do acontecimento (ou mesmo no tempo remoto, conforme cada situação vivida) paraquem vive a dor da morte de quem lhe é próximo ou familiar. Quem afinal chorou diante da morte de Lázaro, o humano Jesus de Nazaré ou o divino Cristo da fé? Ou os dois? Não ensina a teologia cristã que o Nazareno era habitado pelas duas naturezas? Como é impossível um choro abstrato ou metafísico, e se Deus de fato chorou, só poderia fazê-lo pelo rosto humano de Jesus de Nazaré. Na Bíblia há três referências explícitas de que Jesus chorou, e cada uma manifesta um sentido próprio. O choro-compaixão pela morte do amigo Lázaro, o choro-lamento sobre a cegueira de Jerusalém e o choro agônico no monte das Oliveiras.
05. O choro-lamento de Jesus de Nazaré diante da morte de seu grande amigo Lázaro encontra-se em Jo 11, 35, naquele que é o mais curto versículo bíblico: “Jesus chorou”. Jesus chora a morte de Lázaro e igualmente chora pelos familiares e amigos entristecidos e desolados diante do acontecimento. Marta, irmã de Lázaro, que bem conhecia o quanto Jesus amava seu irmão, se dirige a Jesus e, desolada, diz: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”. A despeito de crer na promessa bíblica da ressurreição do último dia, Marta permanece inconsolável. Embora muito cresse nas palavras do bom Nazareno, a promessa da ressurreição do último dia era para Marta apenas um consolo metafísico. Mesmo a incorrer em anacronismo, pois direita e esquerda não eram conceitos do mundo semítico de Jesus, Marta jamais seria vista como uma pobre de direita, menos ainda pobre de direitos. Para sua intuição materialista, a promessa transcendente da ressureição futura não servia de consolo para a morte real e vivida no plano da imanência, diante da perda de seu irmão Lázaro.
06. Cabe a pergunta: a morte como a vitória da espécie sobre o indivíduo, conforme sinaliza o texto marxiano, pode servir de consolo para um materialista? E tal consolo não seria mais metafísico do que materialista? Marta era humana, demasiadamente humana, e quem poderia acusá-la de egoísmo materialista por cobrar de Jesus de Nazaré a restituição da vida de seu irmão Lázaro, em corpo e alma? Se Jesus fosse um metafísico e se limitasse à compreensão abstrata do sofrimento, não teria ouvidos para o clamor de Marta. Bem o contrário. Segundo narra o evangelista, “Jesus, então, comovido em seu íntimo, veio ao sepulcro… e gritou com voz forte: ‘Lázaro, vem para fora!’”. E a vida de Lázaro foi devolvida. E houve ali muita alegria e espanto. Judeu como Jesus, Marx teria em Marta um quadro o mais militante, lúcido e pedagógico para compreender que não é possível salvar a classe sem salvar o indivíduo.
07. A cada ano a celebração cristã da Páscoa como passagem da morte para a vida cede lugar à multiplicação dos corredores da morte construídos pela necrocracia do capital. O capitalismo se faz religião (Walter Benjamin) e a religião legitima e faz do altar o lugar do lucro, da acumulação e da posse a mais indecente: “E agora, vós, ó ricos, chorai e lamentai-vos por causa das desgraças que virão sobre vós! Vossas riquezas estão podres e vossas vestes devoradas pela traça” (Tg 5,1-2). Estreita-se ano a ano, para o ser natural e para o ser social, a saída pascal que deveria conduzir à vida. Como celebrar a Páscoa num mundo que se move pela força da morte, no campo e na cidade? Ontem como hoje, ressoa o lamento de Jesus de Nazaré: “Jerusalém, Jerusalém, que matas os profetas e apedrejas os que te são enviados! Quantas vezes quis congregar teus filhos como a galinha congrega suas crias sob as asas, mas não quisestes!” (Mt23,37). Para concluir com a bela e profana teologia de Walter Benjamin: nem os mortos estarão em segurança se o inimigo (o capital) vencer. E Jesus, mesmo Ressuscitado, estaria em segurança numa tão aguardada segunda volta(Parusia)?
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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical, e filho do encontro dos rios Solimões (em Manacapuru – AM) e Jaguaribe (em Jaguaruana – CE). Em Manaus, AM, aos 20 de abril de 2025, na Páscoa.
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