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EU E O PIANO

Nestes dias de quase desespero, tento aliviar minha tensão, no teclado do computador. A perda ou internação de pessoas queridas, próximas a mim e aos meus, por conta da covid-19, é a lamentável justificativa pra esse pânico constante em que me encontro. Amanheço e anoiteço assim. Geralmente, em lágrimas, busco saber dos irmãos, cunhadas, sobrinhos(as), uma vez que o vírus impõe o nosso afastamento, situação nada comum entre nós. Aumenta a nossa preocupação a (ainda) inexistência de vacina recomendável e a incerteza de que nada nos acontecerá. Então, busco lembrar momentos felizes. Por isso, escolhi falar do meu piano. Juntei, pois, os dois teclados: computador e piano. Ambos me são muito prazerosos.

. . . E, assim, nasce mais uma crônica.


(Vitória Seráfico, junho / 2020)


Quando menina, eu vivia dizendo que queria tocar acordeon. Chegava a fabricar acordeons em folhas de jornal, pregueadas, bem juntinhas; tocava o dia inteiro. Mas o papai rebatia:

- não, minha filha; acordeon é instrumento de sertão. Você vai aprender a tocar piano.

Assim, meu presente de 12 anos foi um lindo piano alemão, inaugurado exatamente na festa do meu aniversário, pela pianista Anita Beltrão, acompanhada, ao violino, por Antonino Rocha. Não me lembro se havia outro instrumento integrando o conjunto. A dupla tocava, aos fins-de-semana, nos jantares do Central Hotel, um requintado hotel-restaurante que havia em Belém, naquela época (naqueeeela!...).

Na semana seguinte, comecei a ter aulas de piano, em minha casa. Minha professora era Maria de Lourdes Souza, nome não tão conhecido, mas muito competente. Tendo resolvido morar no Rio, pra fazer cursos de aperfeiçoamento, entregou-me aos cuidados de sua antiga professora, a querida e admirável Glaphira Lobato.

Professora Glaphira era uma lady. Ao lado da eficiência e da forma didática com que conduzia as aulas, tratava os alunos com carinho de mãe. Educada, discreta, era, na verdade, uma pessoa encantadora. Morava na Senador Lemos, altos da Farmácia Lyra, propriedade de seu marido, o farmacêutico Felinto Lobato – um cavalheiro. Merecia a mulher que tinha.

As aulas eram na casa dela, o que permitia a nós, alunos e alunas, conhecer-nos uns aos outros. De lá vem o meu conhecimento com os irmãos médico José Américo e Aluísio Marçal. (Tenho vaga lembrança de, num dia de audição, ter tocado a quatro mãos com o Zé Américo. Não garanto).

Cheguei ao fim do 5º ano de piano, estudando com a Professora Glaphira. Nunca estudei no Conservatório, porque pessoas entendidas diziam que o método do Carlos Gomes atrasava um pouco o desenvolvimento dos alunos, com longos estágios (musicalização, solfejo etc etc) até chegar o dia em que, finalmente, pegavam no instrumento pretendido. O fato é que, em poucos meses, eu já mostrava minhas qualidades, sendo aplaudida pela restrita plateia familiar.

Tempos depois, Professora Glaphira aposentada (ou doente, não lembro bem), comecei a ter aulas com a Professora Coema Espíndola, reconhecida pela competência. Era professora do Conservatório. As aulas eram na casa dela. Dali vem a minha amizade com o Evaldo Reis, que me chama, até hoje, de minha pianista predileta. Seria mais correto minha arranhista. Outro traço que nos une é o gosto por escrever.

Sempre tive predileção pelos clássicos. Sem nenhum demérito pela música popular. Apenas uma questão de opção. Mas por clássicos entendíveis, agradáveis aos ouvidos de qualquer leigo; não esses clássicos chatos, demorados, pesados, que acabam se tornando canções de ninar.

Meu repertório ia do Noturno nº 2, de Chopin, passando por Pour Elise, de Bethoveen, incluindo as Ave, Maria! de Schubert e de Gounod, entre outras. A música predileta do papai era Olhos Negros. Fazia parte do meu dia-a-dia ao piano. Outra que ele não dispensava: Torna a Surriento. Mamãe tinha predileção por La Cumparsita. A minha predileta, porém, era Le Lac de Côme. Era sempre a que abria minhas apresentações. Além dessas, outras mais se juntavam ao meu cardápio musical. Tio Cazuza, meu padrinho, não dispensava o Carnaval de Veneza, uma peça muito simples, talvez a primeira que aprendi a tocar.

O papai também pretendia fazer do Jorge um violinista, já que o violino era outra preferência musical do velho Seráfico. Comprou-lhe um violino, e contratou uma professora, Nair das Neves, vizinha de nossa avó, que também ensinava no Carlos Gomes. Eram duas aulas por semana, na casa dela.

O aluno não perdia uma aula; nos dias certos, após o almoço, lá ia ele, violino em punho, livros etc. Mas o tempo passava, e o violinista não apresentava nada além dos primeiros acordes da Valsa do Papai. Gozação entre os irmãos. Papai e mamãe se preocupavam, mas nada diziam, pra não desestimulá-lo.

Nessa época, uma molecada jogava uma pelada infalível, quase todas as tardes, num campinho às proximidades da casa da vovó. Numa tarde, indo visitar sua mãe, nossa querida Maroquinha, papai vê uma turma de moleques jogando bola. Pra espanto seu, depara com o arco de um violino encostado à parede e, mais adiante, o instrumento, junto com alguns livros. Logo identificou o instrumento. E o dono dele, claro. Conversando com o filho, papai viu que o gosto do menino estava longe de arcos e violinos.

Assim, o sonho acabou. O Jorge nascera, mesmo, pro esporte.

Na data natalícia do papai (2 de dezembro) e na da mamãe (9 de maio), eu chamava o violinista Moisés Melo e um pianista seu parceiro, para fazerem o fundo musical do encontro. Só fundo musical, sem dança. Em muitas dessas ocasiões, eu e alguns irmãos, além do Amintas, claro, tomávamos o microfone e soltávamos nossos trinados, acompanhados de violino e piano. Momentos inesquecíveis!...

A paixão do papai por piano era imensa. Pouco antes de adoecer, conseguiu encontrar a partitura de O Despertar da Montanha. Já não havia em Belém o Empório Musical, onde compramos várias peças, mas ele conseguiu, na verdade nem sei como. Comecei a estudar a partitura, mas veio o diagnóstico, e . . .

Saber da doença do papai paralisou todo o meu organismo. Perdi a vontade de viver. Não fosse a força que me davam os 8 irmãos e cunhados(as), nada teria me restado. Mamãe de nada sabia. Doía em mim vê-lo sentado na poltrona, ouvindo-me tocar, e eu lembrando que pouco tempo restava para aquela cena deixar de acontecer. Eu também morria aos poucos. Parei de tocar. Tudo era pretexto pra eu não abrir o piano.

O papai e o piano silenciaram juntos.

Na verdade, passado algum tempo, exatamente pensando nele, vinha-me a vontade de voltar a tocar. Mas me faltava coragem. Até que, um dia, muito feliz, ouvi a mamãe me dizer:

- Vitória, volta ao teu piano! Teu pai gostava tanto!...

Resolvi tentar tocar. Qual nada! Desabamos, eu e mamãe. Chorávamos muito as duas. De novo, fechei o piano. Anos depois, morreu a mamãe. E o piano parecia estar fadado ao silêncio definitivo.

O tempo corroía a parte de madeira. E, consequentemente, comprometia a cabeça (tem nome específico) das teclas, no interior do móvel.

Assim, o instrumento passou a ser usado (de forma indevida, claro), pela criançada, nos almoços de domingo. Propositadamente, eu os deixava usar e abusar dele, na esperança de que algum deles venha a se interessar pelo assunto. Ainda há tempo. De abril até agora, junho, já nasceram três bebês; e a família aguarda mais uma, para outubro.

Faço um parêntese aqui pra contar uma parada que me deixou fora do eixo: eu voltava da caminhada, quando, na esquina, esperando o sinal abrir, encontrei uma moradora das adjacências. Estava acompanhada da filha, àquela altura com 7 a 8 anos:

- Vitória, sabes me dizer se o Carlos Gomes é pago?

- Acho que não. É uma Fundação do Estado ...

- Eu quero matricular a .....

- O que ela vai aprender?

Entortando a boca, num ar de deboche, cheia de desdém:

- ela quer piano, olha só! Imagina!

- Que lindo! Muito bem!

- Ah, não! Eu quero que ela estude guitarra.

Atravessei com o sinal fechado, mesmo. Não valia a pena gastar o meu Latim, continuando o assunto.

O piano que tenho hoje não é aquele que ganhei aos 12 anos. Quando passei a morar em apartamento, tive que comprar um adequado pro espaço. Foi adquirido há mais de 40 anos. Então papai resolveu dar o antigo para a prima Irene, que também começou a estudar música. Sem nenhum sucesso, diga-se.

Recentemente, tenho pensado muito voltar a tocar. Meu piano me faz falta. Então, poucos meses atrás, antes de a Covid devastar o mundo e as famílias, chamei um profissional do ramo, filho do nosso antigo afinador, já falecido. Era fevereiro; faz quatro meses, portanto.

O rapaz (o mesmo que afina o piano da Lúcia) examinou todo o móvel, fora e dentro, avaliando os danos causados pelo tempo. Maravilhado, me chamou:

- dona Vitória, o madeirame está, de fato, muito comprometido. Mas as ferragens, absolutamente preservadas. Perfeitas! Intocáveis! Tudo original!

E completou sua observação, mostrando-me o medalhão de bronze, em alto relevo, com a marca e a data de fabricação: Behar / 1872. E concluiu:

- não se desfaça, nunca, deste piano! A senhora tem em casa uma relíquia. Há mais de cem anos, não se fabrica um piano deste.

Depois de fazer o orçamento, ele me disse que, como estava concluindo um serviço (dura três a quatro meses cada restauração), tão logo pudesse, viria buscar o meu. A oficina dele era em sua casa. Porém, a pandemia atrapalhou nossos planos. Outro dia, ele me telefonou, sugerindo que aguardemos o desenrolar da peleja. Ele se viu na obrigação de dispensar, por algum tempo, seus funcionários, até que as coisas melhorem.

Com isso, mais uma vez, minha volta ao piano está sendo adiada.

Meu piano me servia não só para deleite musical. Como todos sabem, sempre gostei de fantasia. Fantasia de carnaval e fantasias da vida. Sou uma sonhadora incorrigível. Canceriana padrão. Também gosto de desenhar. Então, eu desenhava bonecas em cartolina ou papelão, arrumando uma forma de ficarem em pé. Com lápis de cor, brilhos etc, preparava uma fantasia diferente pra vestir cada uma. Minhas bonecas ocupavam a tampa do piano, pra desfilar; era a passarela das candidatas a Rainha das Rainhas do carnaval.

Também inspirada no piano, desenhei uma fantasia, dizendo que será da Maria Eduarda, minha sobrinha, filha da Mylena e do Rogério, caso os pais aceitem ser ela Rainha do Carnaval da Assembleia, quando tiver idade pra isso. Brinco com ela desde seus 9 a 10 anos. Tenho a maquete toda pronta. No momento hábil, pretendo procurar o Carlos Amílcar e dar a ele a incumbência de tornar realidade este sonho (talvez mais meu que da própria candidata, quem sabe?) Título da fantasia: Schubert – o lirismo de uma serenata. Claro que pesquisei algo sobre a Serenata de Schubert - que também fazia parte do meu repertório - bem como de aspectos do próprio autor.

Foi o piano também o responsável pela única vez em que fui suspensa no colégio. Eu tinha 14 anos. Na sala dos professores, na Escola Normal, havia um piano de cauda que me encantava. Eu era doida pra tocar nele. Mas o negócio era como que proibido para estranhos. Só que, nessa manhã, aproveitando a folga do recreio, fui até à sala, abri o piano e comecei a tocar. Vendo aquilo, minhas colegas – que desconheciam esses meus dotes – admiradas, me cercaram e me aplaudiam a cada número. Resultado: tocou a sineta para o retorno às salas, e nenhuma de nós ouviu. Já fazia mais de quinze minutos, e nada de nós – um grupo de 8 a 10 – voltarmos à aula. Quando nos aproximamos, já demos de cara com a Inspetora, que nos levou à Secretaria.

Suspensas por dois dias. Como o motivo não me causava nenhum constrangimento, contei tudo aos meus pais, antes mesmo que o colégio enviasse o comunicado oficial, de praxe.

Portanto, reafirmo o propósito de voltar a tocar. Mas, antes de fazer um conCerto para os amigos, é preciso que aconteçam dois conSertos: o do piano e, sobretudo, o da pianista, cujos dedos já parecem estar enferrujados.

Aguardemos, pois.

(V.S. junho / 2020)









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