Orlando SAMPAIO SILVA
- VI P A R T E - D - A V I D A N O D E S E R T O
A viagem pelo deserto, demandando Canaã, transcorreu ao longo de quarenta anos, com demoradas paradas, acampamentos, marcados por episódios extraordinários, teofanias e vivências epifânicas. Ocorreram rebeliões, punições e perdões. Muitas mortes e incontáveis nascimentos. A Bíblia narra que ao povo foi concedida a graça divina do “maná do céu”, (“man”, em hebraico) um alimento. O maná se renovava a cada dia, não era possível armazená-lo. Há explicações para a ocorrência do maná com fatos empíricos verificáveis como produto da natureza do deserto do Sinai. Moisés, ainda no uso dos poderes que lhe foram atribuídos por Deus, fez jorrar a água das rochas. Nuvens protetoras dos raios solares inclementes acompanharam o povo em sua caminhada.
Na longa viagem através de terras desérticas, aquela grande coletividade populacional contou com um fator propiciatório básico, a organização das doze tribos, pois estas, tendo sobrevivido à escravidão e à fuga, mantinham aquela organização fundada em responsabilidades no exercício de funções específicas por cada tribo (funções sociais, econômicas, operacionais, produtivas, religiosas etc.), que vinham dos primeiros tempos tribais e atravessou a escravidão. Esta estrutura organizacional facilitou a vida de tantas pessoas no demorado deslocamento.
Moisés, ao longo do tempo, durante a mudança do Egito para Canaã com seu povo, deu forma e institucionalizou a religião hebraica, deu corpo à Torá (as leis mosaicas, cerne da religião) e deu início à constituição do Talmude (livro rabínico). Foram quarenta anos de vida no deserto, tempo suficiente para a obra de instituição da religião. Entre os levitas havia os sacerdotes, os rabis, os rabinos. Moisés dispôs do tempo de que precisou para codificar e dar organicidade e funcionalidade dinâmica à religião hebraica, seu funcionamento, seus rituais, o cerimonial, a liturgia, seus usos e costumes, os ritos sacrificiais em louvor a Deus. Teve tempo, também, para proceder circuncisões de adultos, conforme a determinação divina. Moisés foi o fundador da religião hebraica. Os levitas foram seus auxiliares.
Mas, Deus não concedeu a Moisés a graça de chegar com o povo à Canaã. Moisés com o seu povo atravessou as planícies de Moab (Moabe) e chegou ao monte Nebo. Então, o líder condutor assomou ao pico do monte, chamado Faga ou Pisga, de onde, orientado por Deus, o fundador pôde contemplar, da distância, Jericó e a “terra prometida”. Desta forma, antes do final do percurso, enquanto o povo prosseguiu em sua jornada, Moisés, por determinação divina, ficou no monte Nebo (situado em terras da Jordânia de hoje), onde morreu, aos 120 anos de idade. Moisés, o líder do Êxodo e sistematizador originário da religião hebraica, não atingiu a Terra Prometida. Nesta fase final da caminhada, por determinação de Deus, o povo israelense foi liderado por Josué. Josué nasceu em 1.355 a. C., no Egito, e morreu em 1.245, em Canaã.
Esta, acima, é a narrativa, digamos, oficial ou bíblica dos últimos tempos de vida de Moisés. Porém, há outras versões e interpretações a propósito desses acontecimentos. Freud, em sua obra “Moisés e o monoteísmo” (1939), procede a uma abordagem psicanalítica sobre os fatos referentes à morte de Moisés. Na linha de abordagem analítica do “assassinato do pai”, ele admite a possibilidade de o líder do Êxodo ter sido assassinado a pedradas pelo povo judeu. Além da hipótese freudiana, há outras, tais como, a versão que considera ter sido Moisés assassinado pelo próprio Josué que, em seguida, assumiu a liderança do povo. Em acréscimo, admito a possibilidade de o sistematizador da religião hebraica não ter completado sua missão de condutor do povo hebreu à “Terra Prometida”, por um lado, porque sua idade avançada não lhe dava a força física necessária aos embates armados na conquista da “Terra”; foi necessário ser ele substituído por um líder mais novo, para levar o povo à guerra de conquista territorial; outra possibilidade alternativa, que, também, admito, é a de estar Moisés acometido de grave doença incurável (aquela que ele exibiu ao povo judeu e ao faraó, para logo demonstrar o seu poder com a sua própria cura imediata) e, por esta razão, passou a Josué a chefia da missão de condução final do povo e de conquista do território, ficando só, no monte Nebo, onde viveu seus últimos dias.
As hipóteses de possibilidades para as circunstâncias referentes ao afastamento de Moisés da liderança do povo surgem exatamente pelo fato de estarmos lidando com narrativas que apenas constam dos livros religiosos, envoltas em atmosfera sagrada e/ou mítica, sem fontes científicas históricas de comprovação. Penso que não se deve negar o fulgor humano deste ser, Moisés, que é admitido por um povo como o fundador de sua religião e o assegurador de sua liberdade e de sua unidade étnica. Referente à versão bíblica, é o caso de perguntar-se o por quê da decisão do próprio Deus ao impedir Moisés de completar sua missão, que era de origem divina (!), missão da qual ele se desincumbira até quase ao seu final de forma sábia e épica (?). Em resposta a esta indagação, constam aquelas hipóteses acima registradas.
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