Tento deixar por menos, mas é impossível desconsiderar certos aspectos que qualificam, para o mal, a situação que levou à chacina dos médicos, no Rio de Janeiro. Ainda assim - e por isso mesmo -, constato nada haver de surpreendente no lamentável acontecimento. Talvez concorra para meu sentimento a certeza de que ele é, por mais trágico que seja, apenas mais um, tantos têm sido praticados até o momento, sem que tenhamos sequer a previsão de quando outro não mais ocorrerá. Um processo, portanto, não um caso fortuito, inusual, desvio eventual do cotidiano de uma sociedade saudável. Quem venha acompanhando a vida e os costumes nacionais, a administração pública, as práticas empresariais, e a conduta de lideranças políticas, empresariais, militares, supostamente religiosas, e jornalísticas, só por absoluta fragilidade mental e intelectual, ou flagrante desonestidade poderá dizer-se surpreendido. Como se as milícias e outras organizações criminosas fossem fruto de geração espontânea, sem nenhuma correspondência com o caldo de cultura por que todos somos responsáveis. Uns, porque isso lhes proporciona vantagens. Eleitorais, financeiras, políticas ou de outra ordem. Outros, por ignorância, indiferença ou baixo senso de cidadania, chegam à cumplicidade - não menos que isso. Somos, portanto, todos responsáveis. Propositalmente alheios ao significado do discurso que a prática ilustra, toleramos abusos, damos crédito à mentira, aplaudimos a ação criminosa dos espertalhões e bandidos, cujos dedos sempre indicam a direção que lhes interessa. Os que admitem válido pensar e dizer que bandido bom é bandido morto admitem matar aqueles que, bandidos acobertados sabe-se lá por que poder, escolhem quais serão os mortos. A esta altura, é difícil elencar todas as circunstâncias que integram a realidade. Menos, ainda, identificar as causas que nos trouxeram a ela. Não custa, porém, oferecer alguns aspectos a nosso ver constitutivos do cenário de que temos razões para estar envergonhados. Quando aceitamos e aplaudimos o elogio à tortura e a reverência abjeta aos torturadores, contribuímos para engrossar o caldo de cultura experimentado hoje. Se renunciamos ao direito de cobrar e pressionar as autoridades públicas quanto ao cumprimento de seus deveres legais, concorremos para consolidar práticas nocivas à sociedade. Vão na mesma direção o aplauso à mentira, e mais grave ainda, sua disseminação. Também contribui para a construção desse trágico cenário o porte e uso de armas, sobejamente demonstrado quanto isso aumenta o índice de violência nas cidades. A remoção desses ingredientes poderia alterar significativamente a cultura que nos leva a insistir em alegações, às vezes até razoáveis, de que há a ausência do Estado em amplos espaços das cidades brasileiras. Deve-se considerar, porém, quanto essa ausência tem a ver com nossa própria passividade ou, quando muito, atividade também deletéria. Entre nós, os que mais infringem a legislação são os que trazem no cenho sempre carregado a crítica à corrupção. A tal ponto, que somos talvez o único país em que o crime de corrupção só tem um agente - o passivo; o corrupto ativo, que alimenta o outro lado, passa ao largo de qualquer incômodo. Talvez por que aposte na próxima oportunidade em que reincidirá. Para isso servem o dinheiro e o poder. Menos que os milhares de médicos mortos pela indiferença de alguns cúmplices da covid-19, os três que morreram na Barra da Tijuca podem ter tido a oportunidade de levar o justo lamento pela perda de suas vidas à reflexão necessária, serena e firme. É o mínimo que nossa esperança moribunda pode desejar.
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