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Drummond, João*


Sempre que morre um amigo, morre um pedaço de nós também. A morte de qualquer pessoa representa perda para todos os que ficam. Mas a morte de quem um dia esteve muito perto de nós amplia esse sentimento, em especial quando gratificantes as experiências que partilhamos com o morto. Muito mais quando não havíamos sido absorvidos pelas preocupações cotidianas e o futuro se apresentava aberto à nossa frente. É assim que me sinto, ao saber da morte de João Bernardino Drummond Martins, advogado e ex-Procurador do Estado do Pará. Colegas de turma na Faculdade de Direito da Universidade do Pará, Drummond e eu firmamos uma amizade só compreensível aos que ainda acreditam na possibilidade do vínculo fraterno acima de qualquer outro elo. Ideologicamente opostos em nossa concepção de mundo, nem por isso deixamos de participar de grupo de estudos comum. Nem a convivência diária na casa da colega Maria da Conceição Cardoso Mendes impediu-nos de concorrer à eleição para a Presidência do Diretório Acadêmico de nossa Faculdade. Ele, representando a direita; eu, a esquerda. Ganhou-a, naquele ano de 1964, o colega e amigo Inocêncio Mátyres Coelho. O golpe de 1964 abriu ao Drummond a oportunidade de abandonar a Rádio Guajará, onde trabalhava como locutor. Convidado por outro colega de turma, Jesus do Bomfim Mário de Medeiros, ele foi nomeado Delegado de Ordem Política e Social, no governo do grande beneficiário do golpe, o então coronel Jarbas Passarinho. Essa nomeação, paradoxalmente, fez que aumentasse a amizade pelo colega agora morto. Por uma simples razão: o reconhecimento do grande caráter do Drummond. E do significado da amizade como ele a via. Um dia, já convidado para o cargo, veio falar-me do assunto e me consultou. Aceitaria a nomeação, se eu a compreendesse e compreendesse as razões pelas quais admitiria ser titular de um posto hostil a tudo quanto eu e a maioria dos estudantes universitários pensávamos e defendíamos. Não me fiz de rogado, nem procurei fugir às responsabilidades que adviessem. Lembro-me ter dito a ele que eu não poderia admitir sequer ser convidado, porque estaria contrariando todo meu aprendizado, toda minha opção política, todo meu compromisso ostensivo com as causas mais populares. Seria, no meu entendimento, a traição ao meu modo de ver a vida e o mundo. E suas gentes. Ele era o avesso disso tudo, mesmo se alimentando bons sentimentos. Eu sabia das dificuldades que a família dele enfrentava e imaginava do sacrifício dos pais, para mantê-lo sujeito ao parco salário da emissora Dirigida por Linomar Bahia. Que ele fosse nomeado e superasse qualquer restrição que eu pudesse acaso manifestar. Nossa amizade permaneceria intocada. Drummond, feito delegado, já pedia para a merenda ser servida mais cedo pela colega Maria da Conceição. Teria que ir à noite à antiga Central de Polícia, cada vez mais frequentemente. Não demorou talvez um semestre, Drummond me comunicou: não era mais delegado. Sua índole, seu caráter, suas crenças impediam-no de permanecer policial. Mesmo tendo dado provas de sua conduta irreprochável, quando me acolheu em seu gabinete e me acompanhou, na oportunidade em que, em dia de 1965, fui chamado ao gabinete do coronel Ferreira Coelho, para defender outro colega – Eliezer Athias, que simplesmente descarregara da bexiga boas doses de uísque, na porta da Chefatura de Polícia. Foi preso pelo próprio militar e só encontro com este poderia tratar da liberdade desse outro acadêmico de Direito. Talvez por estouvado, falei grosso com a autoridade policial e temi ser contado como mais um preso. Homisiei-me no gabinete do Drummond. Temia sofrer algum constrangimento naquela unidade policial. Passados alguns minutos, o amigo obteve a informação do Chefe de Gabinete do coronel de que Eliezer seria libertado ainda naquela manhã. Drummond, com o braço sobre meu ombro, acompanhou-me até a porta do edifício Antônio Velho, vizinho à Chefatura de Polícia. Fui em paz para o escritório. Que Drummond também tenha paz, a paz que ele um dia me garantiu.

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*Publicado no Diário do Pará, Belém, PA, 17-05-2020

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