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Desatar nós, desatando-nos

Fios soltos, quando atados a outros fios podem levar ao choque. Claro que não o sentirão os que os ligaram, na elaboração de teias capazes de eletrocutar terceiros. A velha história de que o futuro é tecido pelos hojes em sucessão. O assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, se visto individualmente, pode dar a impressão de que se trata de ato isolado. Quem não se dá o trabalho de recorrer à memória, pessoal e íntima, coletiva e amplamente divulgada, fará juízo incoerente com os fatos e a verdade que eles deixam transparentes, qualquer o esforço de torna-los facilmente deléveis. Um apagamento da História. Antes, do duplo assassinato, o chefe do Gabinete de Segurança Institucional atribuía a um descuido (leia-se a palavra como ela foi dita) de um sargento a divulgação do transporte de uma partida de drogas em avião da comitiva presidencial. Agora, a segurança revelada pelo vice-Presidente da República sobre a execução dos dois amigos dos indígenas ultrapassa a conduta da autoridade, gente àquele vergonhoso episódio. Drogas jamais poderão ser comparadas com vidas humanas perdidas. Embora a primeira pista de que ambas as declarações, pontos e nós da mesma teia, tenha vindo da Polícia Federal, é grande a diferença entre o grau de responsabilidade do órgão e o desempenhado pela segunda autoridade do Executivo brasileiro. Antecipado da irresponsável certeza com que os policiais disseram não haver mandantes no duplo homicídio, o vice-Presidente viu apenas efeito colateral na morte do jornalista. A vítima, Dom Phillips, teria entrado de gaiato na trama. Um suicídio, portanto, como antes se dissera de Wladimir Herzog. Uma espécie de ilustração da segunda parte da ação em que se alcança o que não se vê, ao atirar no que se vê. Daí a impossibilidade de fugir à inevitável suspeita de que o alvo era apenas Bruno; Dom Phillips foi o efeito não-planejado, algo colateral. A diferença, no entanto, está posta: o sargento transportador de drogas não tinha qualquer ingerência na administração da maior floresta tropical do Planeta. O general Hamilton Mourão, ao contrário, traz consigo, muito além do cargo ganho em eleições só maculadas pela ainda obscura facada de Juiz de Fora. Nome também simbólico, diante do esforço que o atual (des)governo tem feito e reiterado, para deixar de lado todo o ordenamento constitucional e, por extensão, jurídico e judiciário. Feito condestável designado para a Amazônia, o vice dispensa à região a mesma distância e o desinteresse que marcam todo o mandato dele e de seu chefe-maior. Se se trata apenas de distância e desinteresse, o contrário de propósito. Entre o descuido e o efeito colateral há espaço para acomodar a falta do oxigênio que levou à morte milhares de habitantes do Estado do Amazonas. Esses são os nós com que nos havemos. Que sejam logo desatados, antes mesmo que os eleitores de outubro deem seu veredito!

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