DA ESTUPIDEZ COMO PROGRAMA EDUCATIVO DE TEMPO INTEGRAL(notas filosóficas sobre a magna didática do capital e a derrota dopensamento)
- Professor Seráfico
- 31 de mar.
- 4 min de leitura
José Alcimar de Oliveira*
De um lado, os inimigos de sempre, alojados em instâncias do Estado e das redes antissociais, atacam
de frente a Universidade e a Escola, porque sua mera existência é uma ameaça ao ressentimento e ao
ódio de que se locupletam em estado de parasitismo e inanição intelectual. Eles, sim, os grandes
ideólogos do nada, tão ruidosos em sua vacuidade de mente e alma. Simples pregoeiros do mercado da morte (Francisco Foot Hardman).
01. Em acréscimo à celebre observação de Marx sobre Hegel, de
que é como farsa que fatos e grandes personagens da história costumam se
repetir, permito-me dizer que é sob forma de escárnio que o repetível pode
ocorrer pela terceira e muitas vezes mais. Afinal, mais do que o bom senso
e a crença no poder emancipatório do iluminismo, a razão no século XXI,
presidida pelo capitalismo em sua atual fase (derradeira? muito
provavelmente) de colapso ambiental e barbárie social, opera por cinismo e
estupidez. A estupidez, aliada ao medo, ao ódio e à ignorância,
converteram-se em instrumentos de dominação e armas de destruição sob o
férreo controle da necrocracia capitalista.
02. Há método e racionalidade na estupidez como cinismo e
escárnio. E apostar na estupidez é hoje um programa ideológico, que
requer e mobiliza elevado aporte técnico e científico, e sua execução não
está nas mãos de curiosos ou amadores. Diferentemente da sociedade
disciplinar, sob o capitalismo digital, do cada um por si e ninguém por
todos, a repressão, mesmo a mais heteronômica, é assumida como cultivo
reificado de si mesmo. É o reino da meritocracia, do indivíduo
empreendedor de si mesmo, como forma de autonomia reversa. E nada é
barato. Para pensar com o educador brasileiro Anísio Teixeira, assim como
não é possível uma guerra barata, menos ainda é barata a manutenção de
um projeto racional de difusão da estupidez. Se a ditadura mata, mata
muito mais a ditadura da estupidez.
03. A grande diferença, mais perversa e cruel, é que hoje a
extrema direita (contida até então pela direita, dita democrática ou menos
incivilizada) desinibiu-se de vez, converteu a estupidez em arma de guerra
contra o conhecimento e o bom senso, passou a engajar corações e mentes
de forma miliciana e a fidelizar seguidores com a força de uma seita
religiosa. O regime da razão iluminista cedeu lugar ao poder da crença. O
que em tese diferencia a crença do procedimento da filosofia e da ciência é
que nessas o sujeito elabora um processo de apropriação do objeto,
enquanto naquela, é o objeto (da crença) que se apossa do sujeito. Trata-se
de um sujeito possuído. O que pode o bom senso diante da força e do êxito
do ridículo quando o conhecimento se torna o alvo preferido da
ridicularização?
04. O pensamento, a consciência ou espírito não conhecem vácuo
ou vazio cognitivo. Os ideólogos da extrema direita sabem como tirar
proveito dessa condição humana, mobilizando preconceito e mentira de
forma programática e monolítica, o que deixa a esquerda, por ser muito
analítica (e pouco dialética) sempre acuada, imobilizada, sem condições de
conter ou neutralizar o poder maquínico da estupidez. Na guerra contra a
estupidez já não basta ao materialismo ser histórico e dialético, deve ser
bélico e armar a classe trabalhadora com as armas da crítica. Não confundir
com a crítica das armas promovida pelo sistema do capital. O belicismo
dialético se faz com o método da organização, da consciência e da luta de
classes.
05. Armada com eficientes dispositivos digitais, a estupidez cínica
da grande burguesia produz e fideliza verdadeiras milícias de estúpidos
digitais e utilmente inocentes. Meu santo de profana devoção, Walter
Benjamin, haverá de concordar comigo que a barbárie da civilização
industrial se torna primitiva quando comparada à produzida pelo
capitalismo digital. Sem as armas teóricas do belicismo dialético o
chamado pobre de direita nunca se reconhecerá como pobre de direitos,
nem fará a transição epistêmica da alienação cognitiva para a consciência
de classe.
06. O que pode a razão analítica ou dialética, conceitual, diante da
ignorância e da estupidez promovidas pela magna didática capitalista, a
verdadeira escola de tempo integral, sempre online, maximamente
inclusiva e reconhecidamente exitosa em seu projeto de manter sob o
regime da alienação o trabalho e a consciência da classe trabalhadora? Se
para o sábio materialismo de Epicuro a filosofia é uma espécie de saúde da
alma, para o materialismo histórico e dialético (por que não bélico?) a
filosofia deve ser antes de tudo luta de classes, compreendida essa como
fato social, como categoria epistêmica de objetivação social, como chave
de leitura da história e, não menos importante, como estratégia de
organização política da classe trabalhadora.
07. Estamos diante da derrota da educação, do pensamento, da
formação. Falar em pensamento dialético quando pontificam a ignorância e
a estupidez pode configurar crime cognitivo. Em reversa referência a
Wittgenstein, nesses tempos regressivos, de ódio ao conhecimento, de
afronta à cultura, de falsificação da história, de destruição da memória, os
limites da sensação passam a demarcar os limites da verdade. É a epiderme
que define, por toques digitais, o trabalho de cognição. Há cerca de três
décadas, antes do atual poder da estupidez digital, Darcy Ribeiro
afirmava que o fracasso da educação brasileira produzido por nossa elite
(do atraso, diga-se) já se afigurava como um projeto com método, hoje
potencializado em intensidade e extensão pela extrema direita, no Brasil e
no mundo. A tragédia política do processo educacional brasileiro, sempre
refratário à práxis, é também não reconhecer as consequências políticas e
sociais dessa tragédia. Há mais de dois mil anos o profeta Oseias
denunciava: meu povo perece por falta de conhecimento.
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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, onde cursou e concluiu o mestrado e doutorado. É teólogo heterodoxo e sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA, Seção Sindical, e filho orgulhoso do cruzamento dos rios Solimões (Manacapuru – AM) e Jaguaribe (Jaguaruana – CE). Em Manaus, AM, aos 30 de março de 2025.
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