Chico/Mônica, Nassif e Marcelo Seráfico
- Professor Seráfico
- 6 de mar. de 2023
- 4 min de leitura
Texto do jornalista Luis Nassif:
Foi o maior show de Chico Buarque que assisti, com a participação majestosa de Mônica Salmaso.
Foi um reencontro amoroso com o Brasil, através da seleção de composições de várias fases de Chico, cada qual impregnando a história de um público sedento de Brasil, que lotou o teatro.
Eram milhares de pessoas, órfãs não propriamente de Chico, mas de Brasil, que reagiam
entusiasticamente a cada música, como para espantar os demônios que já apossaram do país conspurcando o verde e amarelo com suas caras de zumbis abobados, saindo dos porões do inferno.
Passou pelo show grande parte do repertório intemporal de Chico. Mas o momento mais intenso foi quando Chico e Mônica interpretara “Maninha”, a música que melhor antecipou o que se passaria com o Brasil.
A letra narra a história de dois irmãos, após o abusador ter entrado em suas vidas, a saudade da vida perdida, a esperança de um dia ela ir embora.
Se lembra da fogueira
Se lembra dos balões
Se lembra dos luares dos sertões
A roupa no varal, feriado nacional
E as estrelas salpicadas nas canções
Se lembra quando toda modinha falava de amor
Pois nunca mais cantei, oh maninha
Depois que ele chegou
Se lembra da jaqueira
A fruta no capim
Dos sonhos que você contou pra mim
Os passos no porão, lembra da assombração
E das almas com perfume de jasmim
Se lembra do jardim, oh maninha
Coberto de flor
Pois hoje só dá erva daninha
No chão que ele pisou
Se lembra do futuro
Que a gente combinou
Eu era tão criança e ainda sou
Querendo acreditar que o dia vai raiar
Só porque uma cantiga anunciou
Mas não me deixe assim, tão sozinho
A me torturar
Que um dia ele vai embora, maninha
Prá nunca mais voltar
Estava ali, o Brasil que começou a ser ensaiado a partir do “mensalão”, que se consolidou com a Lava Jato, o país do ódio, da destruição do adversário, tratado como inimigo. Até que o abusador tomou conta de tudo, as milícias conquistaram o poder, exterminando doentes, índios e abandonando crianças, destruindo sistemas de ensino, redes de proteção social.
A música aumentou em vários graus a emoção que já cobria a plateia. Não foi necessária nenhuma explicação, nenhum grito de guerra, mas apenas a solidariedade barulhenta de irmãos que se vêem libertados do abusador. E, na saída, a dura realidade batendo de volta.
Se um dia ele vai embora, prá nunca mais voltar, não será por agora. O abusador não é a figura caricata, pornográfica de Bolsonaro e seus filhos, da fada madrinha Michele, com suas maçãs envenenadas de manipulações religiosas, nem a bruxa Damares medindo o dedo de curumins enjaulados.
O abusador, agora, está em cada esquina, depois que uma campanha odiosa de mídia abriu as portas dos túmulos, permitindo que os zumbis escapassem das profundezas e invadissem definitivamente a vida brasileira.
É pior que nos tempos da ditadura.
No início da ditadura você encontrava alguns delatores no seu entorno, mas era como se os porões fossem segregados da sociedade, permitindo a honestos pais de família fingir que não ouviam os gritos dos torturados pelos amigos próximos de Bolsonaro.
Agora, não. O espectro do abusador entrou na cabeça da velhinha rezadeira, do ruralista alucinado, normalizou a atuação dos assassinos reunidos em Clubes de Atiradores e Caçadores, transformou jornalistas em delatores – alguns deles, agora, tentando refazer o caminho de volta à civilização. Fez com que a sobrinha pia, que ia todos os domingos na missa, passasse a desejar a morte de esquerdistas, petistas, comunistas ou qualquer ista injetado em sua cabeça. Jogou no mesmo ambiente médicos imbecilizados, arruaceiros de periferia, vocações assassinas esperando a primeira oportunidade para cumprir a sua sina.
Definitivamente, o abusador não foi embora. Será um árduo trabalho empurrá-los de volta ao túmulo, porque não tem cara, não tem RG, é um sentimento amargo, pútrido, plantado por anos na cabeça do país, como um ectoplasma de Freddy Krueger.
Será uma dura caminhada, mas, pelo menos, sabemos o caminho. E as migalhas de pão jogadas pela estrada, para encontrar o caminho da volta, são as canções de Chico, Milton, Caetano, Nelson Cavaquinho, Zé Keti, Angelino de Oliveira, Adoniran.
Afinal, um país que construiu a mais bela música do planeta, haverá de encontrar forças para recuperar as lembranças da fogueiras, dos balões, dos luares dos sertões, e, em um ponto qualquer do futuro, voltar a ter orgulho de si. "
Do socólogo e professor Marcelo Seráfico, sobre o texto de Nassif.
O Brasil que pariu Chico, Caetano, Gil, Gal, Beth Carvalho, Milton, Cartola, Tom, Nélson Sargento, Pixinguinha e tantos outros artistas nascidos entre o final do século XIX e meados do XX carregava consigo a missão de extirpar as raízes coloniais e inventar uma nação. Havia um projeto de país que incluía a cultura popular e a "dita erudita", Cartola e Villa-Lobos. Havia mediações importantes entre o diagnóstico da realidade e o modo de transformá-la. Paulo Freire, Celso Furtado e Florestan Fernandes estão para a educação, a economia e a sociologia, vistas como parte da "sociopsico-análise" da sociedade nacional, como aqueles artistas estão para a formação de uma identidade nacional plural, inclusiva, sim, mas que reverberava os impasses postos para a criação do país. A ditadura militar teve como missão extirpar essa alternativa de país. Sob todos os aspectos, foi bem sucedida. A liquidação da ditadura não veio pela via do revigoramento da possibilidade de um projeto nacional, mesmo que de capitalismo. Os termos da redemocratização foram impostos pelas forças sociais da globalização neoliberal, o que implicava reconhecer a vigência de uma ditadura sem ditadores explícitos. No lugar da segurança nacional, a austeridade fiscal; fazendo as vezes das Forças Armadas, as organizações multilaterais do capital; ao invés de homens de verde, azul e branco, os tecnocratas de paletó e gravada graduados em universidades. Estas se tornaram o grande aparelho ideológico do capital, agora dissimulado pelo eufemístico "mercado". Desde 1964, um rolo compressor vem passando sobre a sociedade brasileira. Parte substantiva de nós tornou-se massa, pasta, matéria-prima útil a vários fins. Outra parte resiste como pode, busca inspiração nos bons exemplos do passado que ainda se fazem presentes, mas sempre tentando escapar do rolo compressor - cuja velocidade se acelerou nos últimos quatro anos. Precisamos acelerar o passo e, lembrando desse passado alvissareiro, inventar um futuro justo. Salve Chico, salve Noel, Salve Jobim, salve Celso, salve Paulo e salvemo-nos todos nós, juntos, da barbárie que tomou o nosso mundo, nossos sonhos, devaneios e esperanças.
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