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CASA DA VOVÓ

Vitória Seráfico – 2020


Não existe infância feliz que não tenha passado pela

casa da vovó.

Casa da vovó é nosso segundo lar, nosso segundo

aconchego, extensão do afeto e do carinho que temos em

nossa casa. Pelo menos, no meu (nosso) caso.

Íamos com muita frequência à casa de nossa vovó

Maroquinha, mãe do papai. Sobretudo quando morávamos

em Miramar. Nosso ponto na cidade era, exatamente, a

casa dela, na Domingos Marreiros.

Moravam com ela tio Waldomiro, sua mulher,

Idalina, a filha (do primeiro matrimônio) Irene, a tia

Guiomar e o João, nosso irmão. A casa da vovó era, por

assim dizer, o nosso quartel general em Belém. Tudo era

lá que acontecia: Natal, Ano Novo, Círio etc.

Éramos os netos mais novos – os filhos da tia Yayá já

eram adultos. Tia Guiomar era solteira (naquela época, as

solteiras não tinham filhos); tio Cazuza, viúvo, também só

teve uma filha, já adulta naquele tempo. Então, nós, as

nove maravilhas do mundo do papai e da mamãe, éramos

presenças permanentes na casa do Umarizal.

Mesmo sem motivo especial, vez por outra, dois ou

três de nós íamos passar o dia com a vovó.

Jorge e Fátima eram os mais travessos. Formavam

uma dupla da pesada. Então, quando o carro chegava e

saltavam os dois, tia Guiomar dizia logo:

- não, os dois juntos, não! Fica só um!

E lá um dos dois voltava pro carro.

Convém frisar que esta atitude da tia jamais foi

motivo de briga ou confusão entre mamãe e ela. Pelo

contrário, tia Guiomar sempre foi muito estimada pela

cunhada, que sabia, inclusive, do tratamento especial que

cada um de nós recebia em sua casa.

Quando estávamos lá, era grande a despesa da tia

com os ambulantes que passavam na rua. Assim,

ficávamos ansiosos esperando pipoqueiro, cascalheiro, o

amendoim torrado, o vendedor de pupunha e quantos mais

passassem vendendo besteiras – que nos tiravam a

vontade de almoçar. Sem esquecer a sorveteria da

esquina, A Severa, que, invariavelmente, recebia a nossa

visita, a partir das 16:00 horas. O picolé nunca nos faltava.

Enfim, a casa da vovó era nosso segundo paraíso.

Ainda morávamos em Miramar, quando o José

resolveu, como voluntário, entrar no CPOR, tendo em

vista que, no ano seguinte, estaria fazendo Vestibular para

Direito. Com isso, passou a morar na casa da nossa avó,

pela proximidade com o quartel.

No ano seguinte, concluída a construção da nossa

casa, na Boaventura da Silva, ele voltou a morar conosco.

Lindas lembranças temos da casa da vovó.

Tia Guiomar, chapeleira afamada em Belém, sempre

às voltas com os tecidos e as formas. Cada exemplar

arquitetado, eis que nossas cabeças – sobretudo a minha e

a do José - serviam de modelo, pra ver os reparos

necessários.

Carnaval, casamentos, formaturas, desfiles escolares

(na época, os colégios usavam roupas de gala, incluindo

chapéus), tia Guiomar era a profissional procurada por

todos os setores da sociedade. Além disso, trabalhou

dezenas de anos, fazendo toucas para crianças, para a

famosa Casa Guerra.

Belas moças chegaram ao altar, usando a grife

Guiomar Seráfico, prendendo o véu. Assim como

madrinhas de casamento e damas-de-honra. Da mesma

forma, muitas foliãs desfilavam no Baile de Máscaras da

Assembleia, com chapéus criados e confeccionados pela

minha tia-madrinha.

Enquanto ela cuidava das cabeças, Irene, costureira

muito competente, preparava bonitos vestidos de noiva.

Inclusive uma primeira-dama do Pará usou traje feito por

Irene Seraphico.

Eu, geralmente, era testemunha dos momentos da

prova do vestido. (Quem sabe, sonhando com o dia em

que ela faria o meu!...).

Tia Guiomar, quando jovem, era a companheira do

papai nos assustados carnavalescos. Conforme nosso

Sessé (apelido carinhoso que os amigos davam ao papai –

e hoje dado ao Jorge) nos contava, os dois dançavam a

quadra inteira.

Um detalhe: minha tia criava blocos, pra dançarem

nos salões que eles também frequentavam. Papai nos

falava com muita saudade daquele tempo, enfatizando a

criatividade e o bom-gosto da irmã dele. Bonecas de

Saturno, Marujos de Samoa, É do Barulho – alguns que

ele ainda lembrava. Desnecessário dizer que a cabeça dos

foliões ficava a cargo dela.

Não posso deixar de fazer um registro nada

auspicioso:

o último chapéu que minha tia fez foi, exatamente, pra

mim, como madrinha do João, na entrega de espada, do

CPOR. À noite, durante a festa, na casa dela, minha tia foi

acometida de um AVC, que a deixou dez anos numa cama,

até morrer.

Esse chapéu – o primeiro que usei até então – foi

desenhado por ela, com toque de originalidade, único.

Diferente da dezena de chapéus que ela vinha fazendo

para o mesmo evento. Propositadamente, ela me queria

diferente de todas as outras mulheres. E conseguiu. Eu

tinha 15 anos.

Tia Guiomar era a irmã-amiga por excelência. Atenta

às necessidades de toda a família, nunca nos deixou faltar

nada. Ela e o papai eram os que desfrutavam de situação

financeira melhor, embora ambos enfrentassem também

suas dificuldades. Mas um ajudava o outro. Sempre. Nada

faltava a qualquer tio ou a quem por lá estivesse.

Esta lição de vida, este exemplo, papai transmitiu aos

seus nove filhos. E mamãe o ajudava na nobre missão.

Até hoje, tudo entre nós é compartilhado; a alegria e a

tristeza. A conquista de um contagia a todos; o problema

de outro é problema também de todos. Se o assunto é festa

na família, todos colaboram, conforme suas

possibilidades. Alguma preocupação com a saúde, lá

estamos reunidos, tentando ajudar no possível. E assim,

vamos procurando sempre seguir o caminho que nossos

pais nos ensinaram.

Vem deles o hábito de nos reunirmos no almoço

dominical, em minha casa. Hoje, pelo menos num

domingo do mês, juntamos toda a macacada no quartel

general (Vitória buffet). Afora outras oportunidades

durante o ano (Dia das Mães, dos Pais, Círio etc).

Talvez por isso, quem sabe, com muito orgulho,

humildade e felicidade, costumo dizer, agradecendo a

Deus: minha família é a prova inconteste de que a união

faz a força, sim!

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(V.S. março / 2020)

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