top of page

Carta*

Querida amiga Tania,

No livro “A morte é um dia que vale a pena viver”, há um capítulo ao qual me quero referir em especial, porque trata de assunto muito próximo do que estou sentindo. Tenho dúvida de que existe “um tempo de luto” na vida de determinadas pessoas, como consequência de uma grande perda. É o meu caso. Para mim há o sentimento de perda, com a dor consequente, e ela me acompanhará até o fim da minha existência. Racionalmente, não aceito ou não admito a ideia da vida pós morte, em outra dimensão e com outros elementos constitutivos (alma). Perdi meu filho, assim como já havia perdido outro (natimorto), da mesma forma que perdi meu pai e minha mãe. São perdas definitivas. Não tenho a compensação de uma crença religiosa que me alimentaria com a expectativa de meu filho se encontrar em um “lugar” que lhe propiciasse a justiça da paz e da quietude em face do ser bom que ele foi na vida. Seria ótimo se assim fosse... Digo que ele sobrevive em seus pais e no que sua vida de bem feitor fez frutificar: seus filhos, sua neta, e sua obra como um cidadão do mundo, um humanista, que apenas fez o bem, inclusive em seu exercício da medicina. Aí está sua imortalidade. Ele está vivo em mim, neste ser orgânico, nos meus sentimentos, particularmente na minha memória afetiva. Conduzi-lo-ei comigo para sempre, na relatividade do tempo! Sofro por meu filho não existir mais em pessoa e também me sinto culpado pelos erros que cometi nas minhas relações paternas-filiais com ele. Sei que sou apenas um ser humano e, como tal, cometo erros. Tenho consciência de que o projeto que eu tinha como pai superou minhas falhas vivenciais, pois meu filho concretizou com sabedoria sua vida vitoriosa e feliz, ao mesmo tempo em que contribuiu para a felicidade de todos aqueles que privaram de sua influência benfazeja. Tenho consciência disso. Mesmo assim, não me perdoo de meus erros. Sentimento de culpa. No período de formação dos meus filhos, dediquei-me até o limite das minhas possibilidades a eles e foi nesse tempo que errei e que acertei! Há quem diga que eu estou equivocado quando vejo o que denomino de “erros”, pois eles, também, teriam sido acertos, pois as vidas adultas dos meus filhos só demonstram a formação exitosa que eles tiveram. Pode ser. Eu não deveria ser tão rigoroso comigo mesmo!

A notável médica Ana Claudia se refere à “caverna do luto” acertadamente. Penetrei nessa caverna, lá estou e de lá não sairei. A médica, com sabedoria, diz que quem perde um ente querido pode e deve chorar enquanto sentir necessidade. Ela tem toda razão. Chorar não é expressão de fragilidade; é exteriorização de sentimento. Chorei e choro por ter perdido o Álvaro; ele saiu da vida. Também, por não ter tido a possibilidade de dizer-lhe pessoalmente, junto a ele, todo o universo dos meus sentimentos, naquele momento de despedida. Não pudemos nos despedir, de nos dar adeus, de nos abraçar, de nos beijar. Choro!...

Perdoe-me, querida amiga, pelo meu desabafo.

Com um forte abraço,

Orlando

__________________________________________________________________________________*Esta carta, escrita por nosso tripulante, o professor, poeta e antropólogo ORLANDO SAMPAIO SILVA, responde à que recebeu de uma amiga, solidária à saudade dele e de todos nós, pela perda do médico ÁLVARO, filho do autor do texto acima. Ratificando o que o editor diz sem reservas: só há morte quando há esquecimento.

2 visualizações0 comentário

Posts recentes

Ver tudo

Pelo amor a Manaus

FELIX VALOIS ‘Acho que ainda posso contribuir com os que sonham com a melhoria de nossa querida Manaus’ https://portalflagrante.com.br/e...

Comments


bottom of page