José Alcimar de Oliveira*
... Os preços aumentam igual as ondas do mar. Cada qual mais forte. Quem luta com as ondas? Só os tubarões. Mas o tubarão mais feroz é o racional. É o terrestre. / ... Os bons eu enalteço, os maus eu critico. Devo reservar as palavras suaves para os operários, para os mendigos, que são escravos da miséria (13 de junho de 1958).
Fiquei nervosa ouvindo a mulher lamentar-se porque é duro a gente vir ao mundo e não poder nem comer. Pelo que observo, Deus é o rei dos sábios. Ele pois os homens e os animais no mundo. Mas os animais quem lhes alimenta é a Natureza porque se os animais fossem alimentados igual aos homens, havia de sofrer muito. Eu penso isto, porque quando não tenho nada para comer, invejo os animais. / Na fábrica de bolacha o homem disse que não ia dar mais bolacha (...). Eu ficava impaciente porque queria ouvir o que o dono da fábrica dizia. E queria ouvir o que as mulheres dizia. Que dilema triste para quem presencia. As pobres querendo ganhar. E o rico não queria dar. Ele dá só os pedaços de bolacha. E elas saem contentes como se fossem a Rainha Elisabethe da Inglaterra quando recebeu os treze milhões em jóias que o presidente Kubstchek lhe enviou como presente de aniversário (14 de junho de 1958).
Pobre mulher! (Carolina referia-se a uma mulher que havia se suicidado). Quem sabe se de há muito ela vem pensando em eliminar-se, porque as mães tem muito dó dos filhos. Mas é uma vergonha para uma nação. Uma pessoa matar-se porque passa fome. E a pior coisa para uma mãe é ouvir esta sinfonia: – Mamãe eu quero pão! Mamãe, eu estou com fome! (15 de junho de 1958).
... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos. Eles respondia-me: – É pena você ser preta. Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico. Eu até acho o cabelo de negro mais iducado do que o cabelo de branco. Porque o cabelo de preto onde põe, fica. É obediente. E o cabelo de branco, é só dar um movimento na cabeça ele já sai do lugar. É indisciplinado. Se é que existe reincarnações, eu quero voltar sempre preta (16 de junho de 1958).
Passei a noite assim: eu despertava e escrevia. Depois eu adormecia novamente. As 5 da manhã a Vera começou a vomitar. Eu dei-lhe um calmante, ela dormiu. Quando a chuva passou eu aproveitei para sair. Catei um saco de papel. (...) Eu recebi só 12 cruzeiros. Catei uns tomates e um pouco de alho e vim para casa correndo porque a Vera está doente. Cheguei ela estava dormindo. Com os meus ruídos ela despertou-se. Disse estar com fome. Fui comprar leite e fiz u mingau para ela. Ela tomou e vomitou um verme. Depois levantou-se e andou um pouco e deitou-se outra vez. (...) Estou nervosa com medo da Vera piorar, porque o dinheiro que eu tenho não dá para pagar médico. (...) Hoje eu estou rezando e pedindo a Deus para a Vera melhorar (17 de junho de 1958).
Hoje amanheceu chovendo. A Vera, ontem pois dois vermes pela boca. Está com febre. Hoje não vai ter aulas, em homenagem ao Príncipe do Japão (18 de junho de 1958).
Carolina Maria de Jesus (1914-1977)
01. Os seis trechos acima, que epigrafam este texto, foram por mim selecionados do diário – e diário é muito pouco para nominar a força e a qualidade literária da autora – intitulado Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, escrito por Carolina Maria de Jesus. Trata-se de alta e rara literatura, porque a cruel estrutura de desigualdade social determina que pobre, notadamente favelado, não tem direito nem meios para fazer registros, menos ainda literatura. Não é comum contar com uma Carolina Maria de Jesus para registrar a luta pela sobrevivência dos empobrecidos em meio aos quartos de despejo que se multiplicam no Brasil. O seu Quarto de Despejo é um cântico de libertação, pela escrita de uma escritora favelada, das classes subalternizadas deste Brasil dominado pela necrocracia.
02. A elite brasileira (elite?) adora cultuar uma Nossa Senhora branca, adornada de pedras preciosas, na qual possa ritualizar em forma de catarse religiosa sua culpa socialmente irremissível e, de forma esquizofrênica, sempre devota inconfessável desprezo por aqueles e aquelas que a Mãe de Jesus de Nazaré elegeu por predileção em seu Magnificat: “Manifestou o poder de seu braço: desconcertou os corações dos soberbos. Derrubou do trono os poderosos e exaltou os humildes. Saciou de bens os indigentes e despediu de mãos vazias os ricos” (Lc 1, 51-53). A Mãe Negra Aparecida dos empobrecidos e empobrecidas, de todas as cores e culturas, é sempre um incômodo para o vazio ético e ontológico da indigência ritualística do culto excludente da classe que vive da miséria da classe que trabalha e produz riqueza.
03. Carolina Maria de Jesus, cujas relações com a Mãe Negra Aparecida do Brasil imagino seja das mais íntegras e solidárias entre mães empobrecidas e trabalhadoras, já entregou em mãos à Senhora de Aparecida e Nazaré um exemplar especial de seu magnífico Quarto de Despejo. Duas mães que fizeram do cuidado e da solidariedade a mais bela forma de vida. Mulher negra e destemida, mãe solteira e generosa, nascida em Sacramento, nas Minas Gerais, tem seu nome ligado a Canindé, a primeira grande favela produzida pela elite paulistana. Nos anos de 1960 Canindé foi destruída para dar lugar à Marginal do Tietê. Não fossem as mãos livres e a mente sábia de Carolina Maria de Jesus, Canindé seria apenas um registro da imprensa burguesa. Por isso, Quarto de Despejo importa.
04. Fico aqui a remoer ideias e a construir cenários: o Quarto de Despejo de Carolina bem que merecia uma edição conjunta com o clássico da literatura social escrito e publicado pelo jovem Engels, em 1845, A Situação da Classe Trabalhadora na Inglaterra. Sei que a diferença de origem de classe entre Engels e Carolina não pode ser medida por nenhum parâmetro. Mas a posição de classe entre os dois seria das mais afinadas que a literatura dos dilaceramentos sociais poderia registrar. E o prefácio a essa edição conjunta não caberia a Engels, mas a Mary Burns, militante irlandesa da causa operária e companheira daquele a quem o Mouro de Trier considerava o seu General.
05. Que coisa estranha e triste, se for verdade: a obra Quarto de Despejo, de Carolina Maria de Jesus, favelada negra que se fez escritora, é mais conhecida e lida nas escolas dos Estados Unidos do que nas do Brasil. Tomei conhecimento desta obra em 1983, numa edição da Editora Francisco Alves. Quarto de Despejo: Diário de uma Favelada, é mais do que um diário: é um romance tecido com fina observação da vida vivida numa favela, construído com matéria real, sem escapes estilísticos, a partir do cotidiano sisífico de uma mulher pobre, negra, mãe solteira, que encontrou no ato de escrever uma forma de transcender o imediato miserável que dia e noite lhe subtraía vida. O jornalista Audálio Dantas, já falecido e objeto de interpretações polêmicas pela forma como descobriu e lançou ao mundo parte do que encontrou em cerca de “vinte cadernos encardidos” que Carolina guardava no barraco em que vivia, afirmou: “repórter nenhum, escritor nenhum poderia escrever melhor aquela história – a visão de dentro da favela”.
06. Diferentemente de Sócrates e Jesus que nada deixaram escrito, Carolina Maria de Jesus escreveu, e muito. Escreveu um Evangelho de mulher na periferia do mundo. O Evangelho da Favela com marca de autoria de quem conheceu a miséria por dentro. Se ela imprimiu força e integridade em suas palavras, não o fez por artifícios literários, nem por ceder à luminosidade do espetáculo calculado. Nas palavras de Carolina escorrem vida, dor, luta, miséria, beleza, estilo, imanência e transcendência, ousadia, concreto e abstrato, medo, esperança, tudo enfim que é matéria humana, segundo o pensador preferido de Marx, porque nada do que é humano lhe era estranho. O Evangelho de Carolina pode iluminar as zonas escuras que se abatem sobre o Brasil em acelerado ritmo de barbárie neste 2021.
07. Neste 12 de outubro de 2021, dia da Mãe Aparecida e das crianças, a leitura de Quarto de Despejo configura uma tríade de resistência entre Maria de Jesus, Jesus de Maria e Carolina Maria de Jesus. Em nenhum dos três há o menor indício de agressão ou traição estrutural da inocência, mas muito amor e cuidado. Maria cuidou de Jesus e de seus irmãos. Jesus aprendeu com Maria que as crianças têm precedência sobre todos quanto às dádivas do Reino: “Deixai vir a mim estas criancinhas e não as impeçais, porque o Reino dos Ceus (agora enraizado na Terra) é para aqueles (e aquelas) que se lhes assemelham” (Mt 19,14). Aquela criança de nome Vera, conforme o relato literário e cruelmente verdadeiro de sua mãe Carolina, na epígrafe deste texto, de cuja boca saíram vermes, ainda dá nome e realidade a muitas Veras neste Brasil dominado pelos vermes do capital, bem mais predatórios do que os ascarídeos, porque parasitam a vida e a alma, o presente e o futuro do Brasil.
*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 12 de outubro do ano do morticínio de 2021. Dia da Leitura, Dia da Criança e Dia de Nossa Mãe Negra Aparecida.
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