José Alcimar de Oliveira*
O povo sabia que o formal não era sério. Não havia caminhos de participação, a República não era para valer. Nessa perspectiva, o bestializado era quem levasse a política a sério, era o que se prestasse à manipulação (José Murilo de Carvalho).
01. O Rio de Janeiro e a República que nunca foi é o subtítulo do livro Os Bestializados, do historiador José Murilo de Carvalho, publicado em 1987. Merece por todos os méritos de sua construção ser revisitado, relido ou lido. O autor nos oferece instigante contribuição de natureza interdisciplinar para uma epistemologia da consciência histórica sobre os impasses de ontem e de hoje da proclamada e nunca consolidada República brasileira. Sobre este livro, Nicolau Sevcenko, autor da orelha, nos questiona: “Por que razão a República capitalizou e remodelou cidades, mas não permitiu que se formassem cidadãos?”. Afinal, permanece a pergunta: como combinar, no Brasil de 2021, a permanente e substantiva ausência de cidadania com uma República Federativa que constitucionalmente se proclama como Estado Democrático de Direito? Que tipo de Democracia? Que tipo de República? Para trazer à memória Florestan Fernandes, que pensou o Brasil sob a contrarrevolução permanente da autocracia burguesa.
02. Num exercício de natureza genealógica, em diálogo com Nietzsche, como jogar luzes sobre a origo pudenda (origem vergonhosa) de nossa não menos vergonhosa República? Mais grave: uma República nascida sob a promissora racionalidade positivista, afinada ao estado definitivo da mentalidade científica e alicerçada no amor como princípio, na ordem como base e no progresso como fim. Mas da luz também emanam sombras. E as sombras continuam a se abater sobre a República. Cada vez mais sombria. Segundo Bachelard, “é imensa a distância entre o livro impresso e o livro lido, entre o livro lido e o livro compreendido, assimilado, sabido! Mesmo na mente lúcida, há zonas obscuras, cavernas onde ainda vivem sombras”. Ler Os Bestializados, de José Murilo de Carvalho, pode ser um antídoto cognitivo para o Brasil escapar às sombras da caverna na qual a República continua aprisionada.
03. Aos 132 anos de República proclamada e às vésperas de completar 200 anos de Indepedência, o País está à deriva e em acelerado processo de decomposição institucional. Em 15 de julho de 1985, num artigo publicado no jornal Folha de S. Paulo sob o título de “Que tipo de República?”, que depois daria título a um livro homônimo, o nosso sociólogo maior, Florestan Fernandes, parecia se dirigir, há 36 anos, ao Brasil de 2021: “Os fatos mais clamorosos voltam a exigir definições claras, na teoria e na prática. Os coveiros da Independência e da República, os que tornaram impraticável qualquer forma precária e rudimentar de convívio cívico e democrático dentro da Nação, e através da Nação, retomam a linguagem do egoísmo cego e a ação desenvolta da violência dos que ‘tudo podem’”. A precária cultura constitucional cedeu lugar ao arbítrio da ordem.
04. Florestan nos fala de “uma guerra civil permanente e aberta em nossa sociedade civil. E é uma guerra sem quartel. Os privilegiados não abrem mão de nenhuma partícula de seus privilégios e brandem, por qualquer coisa, as armas brancas da degola e suas bandeiras ‘sagradas’, que põem a propriedade e a iniciativa privada acima de sua religião, de sua pátria e de sua família – o que quer dizer que eles não possuem religião, pátria e família ou que, ao possuí-las, não reconhecem o mesmo direito e a mesma necessidade natural aos que não contam no rol da minoria privilegiada”. Adiante, acrescenta que, “no Brasil, nunca existiu uma República – e nunca existirá alguma que mereça o nome, enquanto as ‘classes dirigentes’ ficarem tão rentes a essa barbárie que se rotula civilização e toma ares de ‘democracia brasileira’”. Para recorrer à epistemologia kantiana: a República é vazia, porque formal e sem conteúdo. E quem luta por dar conteúdo ao vazio de sua forma é liminarmente criminalizado.
05. Para a classe que vive do trabalho e produz riqueza, continuamente bestializada pela autocracia burguesa, violentada pela desigualdade social a mais degradada, não haverá saída se não se reconhecer como classe e tomar as rédeas históricas de seu destino. Consciência de classe não é produto de crença, mas resultado de organização e formação política. Três anos antes da Constituição de 1988, Florestan reconhecia que “a Constituição de uma República democrática representa uma condição mínima para que os proletários e as massas destituídas adquiram instrumentos reais de vida política independente. À democracia senhorial oligárquica contrapõe-se uma democracia efetiva, que não poderá ser reduzida de novo a uma democracia burguesa de fachada”. Há algo de “sepulcro caiado” na República, para remontar ao enfrentamento de Jesus de Nazaré ao aparato da religião opressiva dos fariseus de seu tempo.
06. Para Florestan, no Brasil de 1985, impunha-se a urgência de “travar a batalha política crucial. Tudo permanecerá como sempre foi se essa mentalidade retrógrada ultrapredatória não for arredada do caminho. O homem não é meio de outros homens (...)”. Preventivamente antecipando-se ao ódio à ciência e à criminalização em curso da formação política, que hoje fazem regredir o espírito republicano ao obscurantismo medieval, já preconizava que ao menos se lesse Max Weber: “os que sentem pavor de Karl Marx que leiam Max Weber, o corifeu da ‘sociologia liberal’ – e não é preciso fazer um esforço demasiado, basta ler as quinze páginas que formam a introdução de A Ética Protestante e o Espirito do Capitalismo. Ali aprenderão em que consiste a especificidade do capitalismo moderno e que sua existência depende do aparecimento do trabalho como mercadoria, ou seja, do trabalho livre como categoria histórica”. Também de forma preventiva, em defesa de Weber, porque o ódio pode produzir cegueira mental e visual, vale dizer que o celebre pensador alemão nasceu 100 anos antes do golpe empresarial-militar de 1º de abril de 1964, faleceu em 1920, nunca esteve no Brasil, não era marxista e seu primeiro nome era Max e não Marx.
07. Por fim, concluo estas linhas com o último parágrafo do artigo “Que tipo de República?”, de Florestan Fernandes, escrito em 1985: “É nesse pé que estão as coisas. Os que ameaçam e afrontam toda a Nação com uma guerra civil da minoria, pela minoria e para a minoria acabarão por ter diante de si uma guerra civil de verdade. Os que resistem cegamente a toda espécie de mudança ‘semeiam ventos’ e arriscam-se a ‘colher tempestades’... É necessário que a Nação enfrente com firmeza essa situação de crise, que marca sua idade adulta e madura, afogando o golpismo de uma vez por todas na vitalidade de uma revolução democrática que não ceda terreno à reação”. Em seu De Republica, Cícero indagava e respondia: “quid est enim civitas nisi iuris societas?” (O que é, na verdade, um Estado, senão uma sociedade de direito?).
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*José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra, segundo vice-presidente da ADUA – Seção Sindical e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, aos 15 de novembro do ano do morticínio de 2021.
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