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ANA NILDA, SINHA VITÓRIA E O DEVIR DAS MULHERES ANÔNIMAS


A vida cotidiana é a vida do homem inteiro; ou seja, o homem participa na vida cotidiana com todos os aspectos de sua individualidade, de sua personalidade (Agnes Heller).


01. A fotografia que encima este escrito não é um registro da família de sinhá Vitória, do romance Vidas secas de Graciliano Ramos. A data é provavelmente de setembro de 1964, no Alto da Catinguinha, Jaguaruana - CE. Compõem o quadro Ana Nilda de Oliveira (1934-2014) e seus primeiros quatro filhos, de um total de 12. Nos braços, Dulce Enilde, nascida em 1963. Da esquerda para a direita: Leudo Antônio (1960-2015), Maria de Fátima (1957) e José Alcimar (1956). Embora na fotografia aparente bem mais, minha mãe tinha apenas 30 anos. Nenhuma comparação está imune às contradições, pois o princípio dialético do contraditório é constitutivo ontológico do real, seja o real do mundo subjetivo da consciência, do mundo objetivo da natureza e das coisas ou do mundo das relações do ser social. Desse modo e tendo em consideração este princípio, penso que comparada à família de Ana Nilda, a família de sinhá Vitória poderia parecer meio pequeno-burguesa, constituída que era de Fabiano, de dois filhos e da cadela Baleia. Mas a comparação não resistiria à mais rasa dialética e consideraria mesmo um despropósito analítico diante da figura sóbria, sábia e dialética que foi Graciliano Ramos.

02. Se me utilizo do registro fotográfico acima, é para estabelecer uma ponte filosófica entre o cotidiano e a história a partir de uma mulher anônima num tempo e espaço igualmente anônimos. Ana Nilda e sinhá Vitória, a primeira do concreto real e a segunda do concreto ficcionado e não menos verdadeiro, e ambas representantes das mulheres anônimas, têm mais em comum do que podem objetivar os ensaios sociológicos. Embora o golpe empresarial-militar definisse à época o horizonte do país, ninguém na foto, todos carentes de horizonte como se pode ver em seus rostos desolados, dispunha de mediações para compreender, por exemplo, que o leite da Aliança para o Progresso – que meu pai ia regularmente buscar na igreja paroquial de Jaguaruana – era ideologicamente enriquecido com o anticomunismo do Império. Vale dizer que o cotidiano surdo e opressivo da foto estava longe de ser objetivado pela reflexão helleriana. O cotidiano de miséria, de carência de mediações, inclusive, do mundo de Ana Nilda e sinh Vitória era e é impeditivo, com força de quase intransponibilidade, para um diálogo com a Filosofia do cotidiano de Agnes Heller.

03. Três acontecimentos experimentei, em Manaus, no dia 12 de maio de 2016. O primeiro, mais prosaico e doméstico, com quase nenhum impacto conhecido para além dos limites do meu quintal, foram os dez anos de vida canina de Nina, que aqui chegou em 2006. Se prevalecer a proporção em sete entre os tempos de vida canino e humano, teria ela completado 70 anos. Agora caminha para os 105. O segundo, danoso e regressivo, foi a consolidação do golpe que interrompeu o mandato da Presidente Dilma Rousseff, com diferentes níveis de participação das forças de ordem econômica, mediática, parlamentar, jurídica, religiosa, castrense, todas devidamente afinadas e sob o mando do capital sem controle. O terceiro, foi ouvir, naquele 12 de maio de 2016, uma conferência da pensadora húngara Agnes Heller sobre Ética e Saúde. Ela veio a Manaus a convite da Universidade do Estado do Amazonas. Por uma feliz coincidência, Heller completara naquele dia 87 anos. Assistente de Lukács, faleceu aos 90 anos no dia 19 de julho de 2019, na Hungria, politicamente governada pela ultradireita.

04. Sem fluência nenhuma em húngaro e menos ainda sem influência nos aposentos acadêmicos, consegui com algum esforço que Agnes Heller me autografasse o seu livro O cotidiano e a história, de 1970, traduzido por Carlos Nelson Coutinho e Leandro Konder, dois pensadores dialéticos que imprimiram as marcas da crítica e da inteligência no pensamento filosófico brasileiro. Sempre que sou tomado por pessimismo além do tolerável recorro à bela e inteligente sacada filosófica de Heller: “Nem um só valor conquistado pela humanidade se perde de modo absoluto; tem havido, continua a haver e haverá ressurreição. Chamaria a isso de invencibilidade da substância humana, a qual só pode sucumbir com a própria humanidade, com a história. Enquanto houver humanidade, enquanto houver história, haverá também desenvolvimento axiológico no sentido acima descrito”. O dito de Heller, bem mais do que em 1970, se reveste de antídoto epistêmico contra o atual e disseminado veneno da pós-verdade e da negação da história, agravado pela pandemia de Covid-19.

05. Para a grande maioria da humanidade o cotidiano é o lugar da opressão. E os que mais sofrem o peso da opressão cotidiana são os que menos dispõem de mediações para objetivá-la e livrar-se de seu poder sisífico e absurdamente naturalizado. Estrutural, a opressão de classe se naturaliza como cultura, talvez o conceito mais carregado de armadilhas que há. Afinal, abstraída a natureza, tudo é cultura, e inversamente. O teólogo José Comblin afirma que a cultura é a prisão dos pobres, impedidos que são, pelo peso cotidiano e heteronomizado de sua cultura, de subjetivamente se apropriar do mundo. Vivida pelo regime da crença, a cultura cotidianamente reforça uma existência refém do fatalismo, da resignação e do mutismo. Um mínimo movimento de reação individual a essa estrutura opressiva torna-se objeto de reprovação pelos próprios oprimidos. Ainda que impedido do acesso à objetivação letrada da cultura, meu pai Marcondes certa vez rebelou-se contra a cobrança indevida de uma taxa fixada pela autoridade paroquial de Jaguaruana - CE, para´que o assistido tivesse direito à porção do leite e do óleo da Aliança para o Progresso, que deveria ser distribuído gratuitamente. Ao tomar ciência da revolta impotente do meu pai Marcondes, minha mãe Ana Nilda o aconselhou a ir confessar-se ao religioso atravessador. Estou certo de que ele não o fez.

06. Ana Nilda, minha mãe, à própria custa, malmente conseguiu concluir o segundo ano do ensino primário. Marcondes, preso desde criança ao trabalho na roça, foi impedido de frequentar o espaço escolar. Ambos, em bela comunhão, sacrificaram-se e não mediram esforços para que seus 12 filhos escapassem ao jugo do analfabetismo promovido, com reconhecido êxito, pelo projeto de escola excludente e dualista do Estado brasileiro. A saga anônima desse casal à margem da história, ou nela perversamente incluído, me trouxe à memória uma afirmação, dos tempos de ginásio, já não tenho certeza se de um livro de autoria de Antônio Borges Hermida, que de imediato tomei como verdade: todo fato histórico é um fato social, mas nem todo fato social é um fato histórico. O cotidiano social dos anônimos seria destituído de estatuto historiográfico. Alguns anos depois, já estudante de Filosofia, encontrei em Lucien Goldmann uma sentença precisa que me levou de encontro àquela verdade que costumava repetir, dela retirando agora o véu ideológico: “todo fato social é um fato histórico e inversamente”. Mesmo não escrita, a história dos anônimos não é menos fato histórico que a história dos dominantes.

07. É recorrente a tese de que o pensamento como estrutura cotidiana em que se move o pensar define os limites do pensamento e do próprio mundo. Para os diletos filhos da filosofia analítica esta é a chave para quebrar o segredo. Wittgenstein teria encontrado a saída para os prisioneiros da caverna. Mas reside aí uma falha ontológica de base, não no sentido heideggeriano do esquecimento do ser, mas em desconsiderar a precedência ontológica do ser social sobre a linguagem. A linguagem que pensa definir os limites do mundo pode se perder em artimanhas lógicas se permanece refratária ao princípio dialético de que é o mundo (do ser social) que define os limites da linguagem. O mutismo de Ana Nilda e sinhá Vitória, de Marcondes e Fabiano, não provinha de uma falha da linguagem, mas antes da miséria ontológica do mundo em que nasceram. Embora meus contatos com o mundo do além não sejam dos melhores, tentarei por via psicográfica convencer Graciliano Ramos a intermediar um encontro entre Ana Nilda e sinhá Vitória, entre Marcondes e Fabiano, entre Leudo Antônio (meu irmão inventor) e os dois meninos, o mais novo e o mais velho, do mundo de Vidas secas. Quanto à Baleia, tenho dúvidas de que Nina, que ainda está entre nós, iria estabelecer com ela uma relação imediata. Nina, mesmo sempre de barriga cheia e incapaz de saber o que é caçar comida, poderia pôr em risco os preás que faziam parte do paraíso sonhado por Baleia antes de morrer sacrificada pelo disparo de misericórdia de Fabiano. Por meio de Ana Nilda e sinhá Vitória, com a mediação de Agnes Heller, vida longa à luta no DEVIR INTERNACIONAL DA LUTA DAS MULHERES TRABALHADORAS, sobretudo das que vivem sob o peso do anonimato e da opressão.

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* José Alcimar de Oliveira é professor do Departamento de Filosofia da Universidade Federal do Amazonas, teólogo sem cátedra e filho do cruzamento dos rios Solimões e Jaguaribe. Em Manaus, AM, em 08 de março do ano (ainda coronavirano) de 2021.


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