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A Importância do Administrador Público no Contexto Nacional*

Tratar do tema que me é proposto só é possível se apreciados certos ingredientes constitutivos da atual realidade nacional. Especificamente, não há nenhuma validade em discorrermos sobre o assunto, sem antes desenharmos a moldura dentro da qual os administradores públicos desenvolvem suas atividades profissionais. Talvez seja até necessário iniciarmos pela apresentação de conceitos, dado que eles servem, a um só tempo, de balisa e fio condutor de nossa exposição.

Daí optarmos por oferecer, inicialmente, certas noções ligadas a cada um dos termos de nossa palestra, a começar pelo administrador.

Se, para Fayol, desempenha atividades administrativas todo aquele que prevê, organiza, coordena, comanda e controla, tais subfunções hoje estão todas compreendidas no planejamento, organização, direção e controle. Assim, administrador será o profissional ao qual incumbe, nos diversos escalões organizacionais, alguma dessas funções. Não importa, neste caso, o curso superior de onde procede o profissional. Vale mais o conteúdo das tarefas que lhe são designadas, tão universal e fundamental é a função de administrar. Eis a razão por que, estejamos diante de uma força armada, de uma fábrica, de uma cadeia de lojas comerciais, ou de uma escola, um hospital ou banco – haveremos sempre de encontrar alguém ou um grupo de pessoas ocupadas com o planejamento, a organização, a direção e o controle das atividades.

Mas não importa o fundamento jurídico sobre que se sustenta a organização – se no Direito Público, se no Direito Privado -, nela sempre se haverá de encontrar aquele conjunto de atividades sem os quais certamente os recursos seriam desperdiçados, o tempo desconsiderado, os resultados enormemente amesquinhados. É que tanto as organizações do setor público quanto as do setor privado são exigentes do trabalho metódico, sistemático e bem fundamentado dos administradores. Só que, no caso das organizações privadas, a orientação maior sempre virá da permissão de fazer tudo quanto norma legal não impede. O contrário ocorre no setor público, cujos atos são precedidos da necessária autorização. Isso quer dizer que, enquanto o Direito Privado erige a permissibilidade resultante da liberdade individual, como seu ponto fulcral, o Direito Público exige a expressa autorização resultante do interesse público.

Vivemos em tempos de neoliberalismo. Por certo, isso gera consequências que se estendem para muito além dos fenômenos econômicos. Os fundamentos mesmos do neoliberalismo são exigentes de alterações substanciais na vida política, econômica, cultural e administrativa dos estados que o abraçam. Ademais, essa ideologia surge como alternativa a quaisquer outras, tanto que não se compraz apenas em sepultar a experiência socialista da União Soviética (experiência, diga-se, desviada de suas origens), como igualmente busca eliminar qualquer pretensão do well-fare state (estado do bem-estar).

Para os propósitos desta despretensiosa palestra, fiquemos com uns poucos traços distintivos do neoliberalismo: a privatização, a desregulamentação e a prevalência do individual sobre o coletivo.

Trataremos deles, subvertendo a ordem antes anunciada. Uma só razão – e creio que suficientemente ponderável – justifica essa mudança. A valorização dos interesses do indivíduo sobre os interesses coletivos, sociais, está no cerne do liberalismo, num certo sentido herança da Revolução Francesa. Se, à época desse interessante movimento revolucionário, o primado do individual sobre o coletivo representava inegável avanço da sociedade humana, os tempos hoje são outros. Após 1789, na França, firmava-se o tríplice compromisso do Estado com a liberdade, a igualdade e a fraternidade. Nunca é demais lembrar que se vivia, antes da queda da Bastilha, regime despótico, tão comum quando a regra era a monarquia. A ascensão da burguesia, derrubada a nobreza junto com as paredes da prisão parisiense, pedia por liberdade que antes lhe era negada. E que, ainda hoje, é negada a grandes parcelas da sociedade, na França e fora dela. Daí que possamos ver a liberdade que a Revolução Francesa nos legou como privilégio de que somente alguns poucos têm a oportunidade de desfrutar. Tratava-se, portanto, simplesmente de fazer valer os interesses dos indivíduos sobre os interesses da coletividade, não o deferimento, a todos, do livre direito de fazer ou deixar de fazer o que cada um deseja. Daí estar a sociedade humana cada dia mais longe da igualdade, que faria da humanidade uma sociedade de companheiros. Torna-se fácil constatar que a fraternidade, de forma semelhante, não é visível, nem que se espiche o horizonte para muito longe...Ao invés, ainda não está de todo superada a noção, preconceituosa para não dizer desonesta, de que à desigualdade biológica deve seguir-se, inevitavelmente, a desigualdade social. Há, ainda, os que veem como determinismo divino o fato de alguns terem tanto, enquanto outros nada têm...

Por que buscava a igualdade, o comunismo foi tenazmente combatido, desde quando Karl Marx lançou o manifesto de 1848. As tentativas de experimentar as ideias que o filósofo alemão formulou mostraram-se sólidas ao ponto de desmancharem-se no ar. Ainda frequenta nossa memória o simbolismo da queda do Muro de Berlim, ícone do nosso tempo, pelo que tem de esclarecedor quanto à frustração do regime vigente na União Soviética e em boa parte do Leste Europeu, a partir de 1917. Não vem a pelo especular sobre as razões pelas quais o que chegou a constituir um sonho para expressiva parte da humanidade ruiu sem a menor resistência. O fato é que com o Muro caía, também, a esperança de ver surgir no Mundo um regime em que os prejuízos são suportados por todos, mas os benefícios também por todos são recebidos. Certamente, ali não estava sendo posto um ponto final na História, como estudiosos exageradamente comprometidos com o establishment tentaram demonstrar. Mas é certo que foi iniciado um novo período histórico, em que ao neoliberalismo não se apresenta qualquer alternativa.

Já na segunda metade do século passado, Margareth Tatcher fazia o Reino Unido regredir em suas políticas de bem-estar social. Não foi diferente com a Alemanha; na França, do mesmo modo, presidentes filiados a partidos aparentemente fiéis a ideários opostos não hesitaram em repetir o que a primeira-ministra britânica havia feito.

Que isso tem a ver com o tema de nossa conversa? – estarão vocês se indagando.

Eu lhes respondo: tem, e muito!

Dentre as nações de maior expressão no Mundo, o Brasil talvez seja uma das que mais mergulharam no mar neoliberal, a ponto de frequentemente sofrer a ameaça de afogar-se.

Aqui, a desmontagem do Estado se fez com tal volúpia e ganas, que quase não sobra espaço para o emprego sequer da expressão Administrador Público. Pelo menos com o conteúdo anterior. Reduziram-se as oportunidades de emprego na burocracia estatal, promoveu-se amplo programa de dispensa voluntária, desestimula-se, cada dia com mais vigor e utilizando, dentre outros expedientes, a política salarial, o ingresso dos mais jovens nos cargos da administração pública. Ao revés, transferem-se para o setor privado atividades e setores inteiros, sob o pretexto de melhorar-lhes o desempenho. A experiência vem mostrando, no entanto, os desacertos dessa política, tantos os sofrimentos que ela vem impondo aos brasileiros. Não me refiro, aqui, ao desemprego, aos baixos salários, à má imagem cuidadosamente disseminada pelos próprios agentes da administração oficial. Quero referir-me aos maus serviços que a privatização vem gerando, de que são prova inconteste as queixas levadas aos órgãos de defesa do consumidor e usuário.

A desregulamentação, outro dos pontos cruciais da política neoliberal, tem por escopo assegurar a mais ampla liberdade aos novos messias – os empresários, tratados pelo Estado com deferências e privilégios que contrastam flagrantemente com a desatenção deferida e os sacrifícios exigidos dos cidadãos. Embora os novos donos do que um dia foi patrimônio coletivo, por que construído com o suor de todos, tudo possam e nada devam, somos levados a pensar que também gozamos de liberdade. Nesse caso, regulamentos seriam dispensáveis, dado que estaríamos todos livres para firmar contratos, sob a égide da liberdade tão ao gosto da burguesia, desde a Revolução Francesa.

Assim, estabelece-se o contrato semelhante ao que a galinha fez com o porco, para que, juntos, produzissem uma omelete de presunto. A galinha é o burguês; nós somos o porco. Postos os ovos necessários para a omelete, outro dia virá; outro dia a galinha porá ovo. O porco – coitado! – precisou dar a vida, para possibilitar a confecção da omelete.

Então, se pudéssemos resumir, diríamos que a desregulamentação e a privatização determinaram alterações substanciais no panorama administrativo do País. A proposta bem-sucedida de redução da máquina estatal sempre vem acompanhada de acenos quanto ao estabelecimento por conta própria, solerte e ilusoriamente vinculado à capacidade empreendedora dos profissionais. Deixa-se a critério de cada indivíduo a escolha dos rumos profissionais a seguir, quando não se oferece nenhuma alternativa. Pior, quando propositalmente escasseiam as oportunidades de trabalho honesto e regular.

Posso formular uma primeira conclusão, dado que outras serão feitas ao final desta palestra. Ela diz que é quase nula a possibilidade de exercício profissional de Administração Pública, no setor governamental do Brasil. Tantos os empregos eliminados, tanto o desestímulo oferecido, tanta a agressão à imagem do administrador público - que somente os dotados de espírito suicida seriam capazes de tentar contribuir com seu talento e seus conhecimentos para o trabalho das organizações oficiais.

Isto quer dizer que os administradores públicos estão fadados à completa exclusão do mercado de trabalho?

Sim e não.

Se entendermos que só há negócios públicos vinculados aos órgãos da administração estatal, a resposta é positiva. Se, porém, ampliarmos nosso conceito de público, em contraposição ao de privado – aí então poderemos tecer algumas considerações menos pessimistas.

Fique desde logo esclarecido: público não é sinônimo de estatal. Enquanto este retrata forte vínculo com o ente jurídico chamado Estado, o público quer traduzir uma área de atuação que compreende os interesses dos cidadãos, seus anseios, sua contribuição (mesmo a dos impostos), suas potencialidades. O dinheiro que cada contribuinte entrega, compulsoriamente, ao Estado, não é dinheiro estatal, mas recursos públicos. Creio me ter feito entender, não é?

E não são apenas os órgãos estatais os destinatários dos recursos recolhidos pelos cofres públicos. Há milhares de organizações, em especial as do que se vem chamando de “terceiro setor”, capazes de bem aplicar esses recursos. Dedicadas à prestação de serviços públicos relevantes – educação, pesquisa, consultoria etc.- essas organizações têm forte compromisso com os interesses do público, razão suficiente para absorverem os administradores dessa especialidade.

É nesse segmento, pois, que vejo abrirem-se amplas possibilidades de atuação dos profissionais da Administração atentos aos problemas coletivos mais que aos individuais. Isso não quer dizer, no entanto, que todas as organizações do chamado terceiro setor empenham-se em privilegiar o interesse público, em detrimento do privilégio de grupos privados. Pesa muito, nesse caso, a concepção que os administradores têm, tanto que não é inédito o registro de organizações que, atuando na esfera privada, sabem colocar-se diante da sociedade, frequentemente defendendo os interesses coletivos difusos, mesmo se à custa da redução em seus lucros. Para tanto, logo se percebe, concorre alta dosagem de sentimento ético, item ainda pouco valorizado em nossa cultura empresarial, mas não só nela – administrativa também. Assim, mesmo em empreendimentos privados podemos ver atuando administradores públicos, tomada essa expressão como o exercício profissional de quem valoriza os interesses da coletividade e se volta, genuinamente, para a busca de soluções e satisfações dos problemas e necessidades coletivas. Num certo sentido, a isso se destinariam os programas de qualidade, hoje tão enfaticamente mencionados, infelizmente mais a título de propaganda que de reverência à realidade dos fatos e propósitos que os animariam.

Como dito antes, impõe-se forte compromisso ético, como divisor de águas. Desse compromisso resultará ação benéfica à sociedade, daí por que não será o caráter de ente jurídico do Direito Público ou Privado, que diferenciará a área de atuação do administrador.

Estou certo de que somente uma resposta vigorosa da sociedade nos levará a reorientar a trajetória que o neoliberalismo nos impõe.

Antes de tentar propor-lhes pelo menos mais uma das maneiras como essa resposta poderá ser dada, permitam-me explorar um pouco mais certos aspectos rotineiramente negligenciados pelos que fazem Administração, estudando-a, ensinando-a, exercitando-a ... enfim...

Aparvalhados diante das técnicas e da tecnologia cada dia mais sofisticada e à disposição das organizações, muitos analistas afastam-se de pontos importantes na compreensão e condução daquelas. Esquecem, por exemplo, a contribuição da teoria da decisão, cujos mais representativos defensores justificavam a existência da estrutura organizacional pela necessidade de nela serem tomadas decisões; sem estas, qualquer ação seria inócua, desprovida de sentido. É certo que muitas correntes do pensamento administrativo buscaram – como ainda hoje buscam- amesquinhar esse papel. Tanto que se ergue, com força por vezes insuperável, a tendência a reduzir as organizações a locais em que apenas se fazem coisas, situada a decisão que as orienta muito longe do locus organizacional. Fiéis a esse desvio de concepção, os tecnocratas postados nas altas posições subjugam a vontade dos demais e inibem qualquer tentativa de dar espaços à criatividade e à manifestação da vontade dos subordinados.

Passa bastante ao largo dessa situação qualquer consideração que leve em conta o papel que a sociedade espera das organizações. Em outras palavras: as organizações, assim concebidas e operadas, parecem desligadas do contexto em que se inserem, nenhum compromisso havendo entre elas e as necessidades coletivas que lhes cumpre satisfazer. Ademais, restritas apenas às operações fabris, eliminada qualquer oportunidade do exercício criativo, as organizações transformam-se em máquinas postas a serviço de ideias e ideais econômicos nem sempre aceitáveis.

Quando a essa maneira de ver alia-se a privatização dos espaços antes considerados públicos (aqui, espaço deve ser entendido em seu sentido literal, mas também em seu sentido metafórico), aí então estreitam-se as oportunidades do bom exercício da administração pública.

Passar, portanto, da atual visão mercadológica, que substitui a sociedade pelo mercado; superar a concepção gerencialista da Administração, que subjuga as práticas sociais pelas práticas empresariais são apenas duas das posturas que considero recomendáveis. Para tanto, os profissionais da Administração terão que se despojar de preconceitos, sedimentados muitas vezes graças à atuação de seus próprios professores. Mais que isso, é indispensável ter o que cada dia se encontra menos – o espírito público. A expressão, segundo me parece, significa a capacidade de enxergar os interesses coletivos antes de deter-se nos individuais; conceber respostas que privilegiem o benefício da maioria, ao invés de privilegiar uns poucos; analisar os fenômenos e problemas com os olhos sempre postos no futuro, jamais no passado ou apenas no presente.

Antes de encerrar, gostaria de chamar sua atenção para um problema que vem, gradativa e insidiosamente, imiscuindo-se no esforço de formação de novos profissionais da Administração. Refiro-me à pretensa neutralidade política dos administradores, que teriam reservada para si mesmos o único e pobre dever de simplesmente dar execução a decisões tomadas fora de sua esfera de competência. Nesse caso, tenta-se realmente transformá-los em meros cumpridores de ordens externas, empobrecendo suas oportunidades não apenas profissionais, mas também pessoais; e transformando-os em autômatos de carne e osso. Se, para as empresas privadas, tal conduta estaria muito aquém das exigências de seu cotidiano, nas organizações que denominamos públicas (ou as que a elas se assemelham), as consequências ainda seriam mais predatórias.

Se me fosse dado indicar-lhes questões que precisam ser encaradas e resolvidas, até que os administradores ditos públicos tivessem assegurado o espaço que sua vontade, sua formação e suas aptidões e habilidades reivindicam, tais questões seriam:

a) o estreitamento das oportunidades de trabalho para administradores dotados de espírito público, como imposição do primado do individual sobre o coletivo;

b) a carência ética vigente em praticamente todos os setores administrativos, mas também políticos e econômicos, do país;

c) a substituição da noção de sociedade pela noção de mercado, atualmente orientadora de toda e qualquer decisão que tem reflexos sobre a vida da coletividade.

Ditas essas palavras, espero que vocês se sintam suficientemente animados a perquirir-me.

Muito obrigado.

__________________________________________________________________________________*Palestra proferida na Universidade do Estado do Amazonas, na Semana do Administrador, 19 de setembro de 2001, Manaus-AM.



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